sábado, 28 de janeiro de 2012

O Genocídio Arménio


“Despues de todo, ¿quién se acuerda hoy del aniquilamiento
de los armenios?”
Adolfo Hitler


Recentemente o Senado francês aprovou uma lei, que segundo o Primeiro-Ministro turco Recep Tayyip Erdogan, é discriminatória e racista. A lei estipula que a negação do genocídio arménio cometido pelo Império Otomano é crime. A ser assinada pelo Presidente Sarozy, prevê um ano de prisão e o pagamento de uma multa no valor de 45 mil euros, a qualquer indivíduo que negue a ocorrência daquele massacre.
É certo que esta decisão do Parlamento francês proporciona uma grave incidente diplomático, entre ambos Estados, França e Turquia, uma vez que, no comunicado divulgado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, referia que «a Turquia vê-se obrigada a tomar todos os passos necessários contra esta disposição injusta que reduz os valores humanos básicos e a consciência pública a zero».

Impera assim debruçar sobre a História e os acontecimentos principalmente entre os anos 1915 e 1917.
«Gwynne Dyer sintetizou bem o problema num artigo publicado em 1976 na Middle Eastern Studies sugestivamente intitulado Turkish «Falsifiers» and Armenian «Deceivers», onde referia que «qualquer historiador que tenha de lidar com os últimos anos do Império Otomano, mais cedo ou mais tarde vai encontrar-se a desejar desesperadamente que a neblina se dissipe sobre os arménios otomanos do final do século XIX e início do século XX, especialmente sobre as deportações e os massacres de 1915» (Fernandes:4). Essa mesma neblina que Dyer referia, ainda teima em não dissipar, vejamos os poucos Estados e organismos/ organizações internacionais, que reconhecem os acontecimentos de 1915 – 1917 como genocídio.


Como revela a figura acima, apenas 22 Estados reconhecem o genocídio arménio, nomeadamente, Argentina, Arménia, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chile, Chipre, Canadá, Eslováquia, França, Grécia, Holanda, Itália, Líbano, Lituânia, Polónia, Rússia, Suíça, Suécia, Uruguai, Vaticano e Venezuela.

Apesar do massacre ter ocorrido no primeiro decénio do século XX, a tensão entre arménios cristãos e muçulmanos (turcos, curdos e árabes) era patente há muito. Até ao século XX, os arménios viveram sempre sob domínio de outro Estado. É no século XVI que a história dos arménios se interliga ao Império Otomano. Como é referido em «o genocídio arménio: o reconhecimento político e o problema histórico», os arménios constituíam uma comunidade étnico-religiosa, com algum grau de autonomia em determinados assuntos, como religiosos, civis e administrativos. Estas comunidades denominadas de millet, eram chefiadas por um patriarca nomeado pelo Sultão otomano. Apesar da relativa autonomia, a posição dos arménios na sociedade era um tanto conflitual. As opiniões divergem. Historiadores turcos defendem que o povo arménio vivia quase que numa espécie de paraíso. Como haviam formado comunidades com estatuto autónomo, tinham possibilidade de desenvolverem-se em todo e qualquer nível. Cemal Inayetullah Özkaya chega até a afirmar que «jamais um povo vencido, um povo submetido, uma minoria étnica ou religiosa teve tais privilégios em nenhum país do mundo» (Idem:5). Esta ideia de convivência pacífica é contrariada por outros historiadores, que referem a existência de uma “classe privilegiados”, dos quais os arménios cristãos não faziam parte. Aliás aqueles estavam sujeitos a várias consequências, quer políticas, económicas, sociais e religiosas. Os seus direitos não estavam em equidade com os muçulmanos.
É nos finais do século XIX (1894, 1895 e 1896) e em 1909, que os acontecimentos começam a precipitar-se para o trágico desaparecimento da população arménia do Império Otomano. Em várias regiões perseguições e massacres de populações muçulmanas contra os arménios, dizimaram cerca de 200.000 vidas.
A situação agrava-se no início do século XX. A revolução dos “Jovens Turcos” em 1908 e a chegada ao poder dos “Três Paxás” foi essencial para o desfecho dos arménios. A política de homogeneização cultural, limpeza étnica e perseguição político-religiosa ao cristianismo, culminou para além do genocídio arménio, no assírio e no grego.
A Primeira Guerra Mundial eclode e apesar da oposição, os arménios entre os 15 e os 60 anos, são recrutados pelo Império Otomano para o conflito. Face a este descontentamento e o desejo de “uma Arménia autónoma dentro das fronteiras do Império Otomano”, culmina em Abril de 1915 com a perseguição e execução de alguns líderes da comunidade arménia em Constantinopla.
Na altura os vários fracassos militares eram considerados pelos turcos consequência das acções dos arménios e das suas deserções, algo ainda a comprovar.
A 27 de Maio de 1915 eram aprovadas leis sobre a Deportação. «Türkkaya Ataöv afirma que “a verdade, documentada por abundantes fontes, é que foi o terror dos bandos arménios organizados, a sua co-acção com as tropas estrangeiras invasoras e a expulsão da população muçulmana que levou à decisão otomana de reinstalar os arménios nos territórios do Sul do Estado”» (Idem:12), nomeadamente Mesopotâmia e Síria. Mais de um milhão de arménios morreram durante a Primeira Guerra Mundial. A este número devemos acrescentar as centenas de milhar de arménios que morreram quando os turcos tentaram estender o genocídio à Transcaucásia (Arménia russa), na Primavera e Verão de 1918 e no Outono de 1920. Na época «(...) el recién instalado gobierno de Ankara ordenó al ejército del general Karabekir “aniquilar físicamente Armenia”» (Dadrian.2007:5).
Apesar de todos os indícios documentados por outros Estados sobre o massacre arménio, uma “cortina de silêncio” foi criada desde a fundação da República da Turquia em 1923 por Mustafa Kemal.
O massacre dos arménios tornou-se um “genocídio esquecido” da História, com a Turquia sempre a negar que não houve qualquer intenção de genocídio no decorrer dos massacres, alegando que tal foi uma necessidade militar.
Segundo a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), define como genocídio como «os actos (…) cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) assassinato de membros do grupo; b) atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo».
Após o exposto é claro que o massacre ao povo arménio foi sem dúvida um genocídio, realizado pelo Império Otomano, do qual a Turquia é herdeira. Houve intenção clara de dizimar uma etnia, e tal verifica-se nos vários acontecimentos desde finais do século XIX, ao início do século XX.

Bibliografia:
Fernandes, José Pedro Teixeira. (s.d.) “O Genocídio Arménio: O Reconhecimento Político e o Problema Histórico”, in http://www.cepese.pt/portal/investigacao/working-papers/relacoes-externas-de-portugal/o-genocidio-armenio-o-reconhecimento-politico-e-o-problema-historico/O-genocidio-armenio-o-reconhecimento-politico-e-o.pdf;
Granovsky, Súlim. (s.d.) “Genocídio Armenio El Extermínio Silenciado”, in http://www.raoulwallenberg.net/wp-content/files_flutter/6797.pdf;
Dadrian, Vahakan N. (2007) “Historia del Genocídio Arménio – Conflitos Étnicos de los Balcanes a Anatolia y al Cáucaso”, Buenos Aires, Imago Mundi, Colección Escritos Corsarios in http://www.serviciosesenciales.com.ar/articulos/armenia-dadrian.pdf;


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Saleh e a imunidade total

Ali Abdullah Saleh, antigo Presidente do Iémen, conseguiu no passado sábado (21/1) que o Parlamento aprovasse imunidade de quaisquer acusações relacionadas com a repressão das autoridades às manifestações. Em contrapartida cede o poder, após 34 anos de regime, e parte rumo aos Estados Unidos da América.

É certo que a proposta inicial de que fosse dada imunidade total a quem tivesse trabalhado com o Presidente durante a repressão, não vingou, mas ainda assim apesar de Saleh conseguir imunidade total, todos aqueles próximos a si serão julgados apenas por “actos terroristas”.

Impera relembrar que durante as manifestações, que eclodiram em Janeiro na sequência da Primavera Árabe, centenas de pessoas morreram, além daquelas que sucumbiram no decorrer do regime.

Nos últimos tempos a instabilidade tem ganho terreno. Para além de Saleh não ter respeitado acordos, que pressupunham a sua saída do país e a existência de eleições, a Al Qaeda tem conquistado terreno na região, tendo ocupado a cidade de Rada aproximando-se de Sanaa. Em Rada, a Al Qaeda conquistou posições do exército, invadiu a prisão local e libertou cerca de 150 detidos.

Ali Abdallah Saleh, em Março do ano passado, no auge das manifestações, chegou a ameaçar dividir o país ou provocar uma guerra civil. Terá até afirmado «os que estão a tentar chegar ao poder devem saber que não o vão conseguir à força. Isto vai transformar-se em guerra civil. Uma sangrenta guerra».

Apesar das várias ameaças as manifestações não cessaram, vindo a intensificar-se recentemente com a aprovação do Parlamento. Saleh consegue imunidade total não só pelas atrocidades cometidas durante o transacto ano, no decorrer da Primavera Árabe, mas também durante o seu regime, que a assemelhar-se pelos restantes da região, seria ditatorial.

Mais uma vez assistimos a uma desresponsabilização pelos actos cometidos. No caso da recente vaga da “Primavera Árabe”, só Hosni Mubarak, antigo Presidente do Egipto, enfrenta um julgamento. Zine el Abidine Ben Ali, antigo Presidente da Tunísia, tal como Saleh, conseguiu abandonar o país, refugiando-se na Arábia Saudita. Relativamente a Muammar Kadafi, a forma grotesca como foi capturado e morto, em Sirte, pode vir a ser considerada crime de guerra.

A constante violação dos direitos humanos e o “fechar de olhos” de Estados ocidentais, dado os interesses, só contribuiu para que determinados líderes sintam-se como “semi-deuses”, seres intocáveis que em troca de certos favores perpetuam-se no poder afastando qualquer tipo de oposição.

É essencial que indivíduos, como Saleh, Ben Ali e outros, sejam responsabilizados judicialmente pelas atrocidades cometidas ao longo dos anos pelos seus governos despóticos. E se o país em causa não possui meios ou capacidade para tal, cabe aos restantes intervir.

Arndt Sinn, professor de Direito Penal Alemão, Europeu e Internacional da Universidade de Osnabrück, refere que «superar as injustiças de um regime é um passo fundamental para a democratização». A forma como cada povo lida com os antigos ditadores é essencial para a formação de regimes democráticos.

A fuga e o assassinato não são a solução!

domingo, 15 de janeiro de 2012

Jemaah Islamiyah


Jemaah Islamiyah ou JI é uma organização terrorista, com incidência no sudeste asiático, em especial na Indonésia, Malásia, Singapura, Brunei e sul das Filipinas. Tem como intuito estabelecer os princípios do Islão. O próprio nome da organização remete-nos para Comunidade Islâmica”.

A 1 de Janeiro de 1993 a organização inicia as suas actividades, devido ao contributo dos clérigos indonésios Abdullah Sungkar e Abu Bakar Bashir, e desde então tem efectuado várias operações na região.

As suas bases remontam ao movimento Darum Islam[1], de carácter conservador e radical, que pretendia o estabelecimento da lei islâmica, Shari´a, na Indonésia. O movimento surgiu na década de 40 do século XX durante o domínio holandês e permaneceu ainda aquando do surgimento da República da Indonésia.

Em meados do século XX, entre 1950 e 1960, o movimento Darum Islam, iniciaria insurreições violentas com intuito de difundir os ideais islâmicos pelo Estado indonésio, contribuindo para a criação de um Estado islâmico.

Bashir e Sungkar seriam presos pela ditadura de Suharto. Após libertação, Bashir e os seus seguidores mudar-se-iam para a Malásia em meados dos anos 80, recrutando indivíduos da Indonésia, Malásia, Singapura e Filipinas, e adoptando o nome de Jemaah Islamiyah. Mais tarde, alguns elementos da JI, juntar-se-iam aos Mujahideen[2], movimento de resistência à ocupação soviética no Afeganistão. Da altura surgiriam as ligações que definem actualmente a rede mundial de grupos islâmicos.

Regressados ao sudeste asiático os membros da organização terrorista divulgariam os seus ideias sem recorrer à acção violenta, não obstante, mudariam de técnica no final da década de 90, aquando do convite de Bashir a Riduan Isamuddin ou Hambali para o movimento. Este tornar-se-ia no líder militar, enquanto que Bashir seria o líder espiritual. Também as várias suspeitas de apoio financeiro e logístico que ligavam a Al-Qaeda no Afeganistão aos JL, contribuiriam para essa mudança de táctica.

É objectivo da JI, a criação de um Estado Islâmico na Indonésia, posteriormente um califado pan-islâmico incorporado por vários Estados da região, e finalmente a criação de um Estado Teocrático Islâmico global.

Kern (218) refere que «el grupo tiene células en Australia, Indonesia, Malasia, Pakistán, Filipinas, Tailandia y Singapur. La JI ha establecido alianzas con otros grupos militantes para alcanzar su objetivo de crear un Estado islámico en el Sudeste Asiático. Juntos comparten recursos para el entrenamiento, el abastecimiento de armas, el apoyo financiero y la colaboración para perpetrar atentados. Se cree que la JI tiene capacidad para organizar una red amplia y en gran parte inexplorada hasta la fecha de las denominadas “células durmientes”. La JI se diferencia de Al Qaeda en un aspecto importante: el enfoque de Al Qaeda es global y sus objetivos objetivos son los occidentales y las instituciones occidentales. En cambio, el enfoque de la JI es regional».

ATENTADOS

Dois anos após a criação do grupo terrorista, em 1995, sob o comando do chefe operacional Hambali, a JI seria responsabilizada por pretender atacar com bombas onze alvos norte-americanos no continente asiático. Cinco anos depois, em 2000 uma série de atentados são realizados. Na véspera de Natal, a 24 de Dezembro, uma série de explosões a igrejas em Jacarta deixavam 17 mortos ferindo cerca de cem pessoas. A 30 de Dezembro cinco explosões em Manila, Filipinas, deixavam 22 mortos.

Em 2001 a JI pretendia atacar missões diplomáticas nomeadamente, a dos Estados Unidos da América, Israel e Reino Unido, mas tais pretensões seriam evitadas pelas autoridades de Singapura, e uma dúzia de militantes da organização eram presos.

Um ano depois, a 12 de Outubro de 2002, explosões na ilha turística de Bali matariam 202 pessoas e feriam 209 indivíduos, na sua maioria estrangeiros de origem australiana. Segundo Kern o atentado em Bali seria o mais sangrento desde os ataques ocorridos a 11 de Setembro de 2001. A Jemaah Islamiyah seria responsabilizada, os Estados Unidos da América definiriam o grupo como uma das organizações terroristas mundiais e a Indonésia mudaria de atitude perante a organização. Até então se a passividade havia sido regra, iniciaria uma investigação sobre a JI, dado que a mesma cooperava com a Al Qaeda e esta actuava em território indonésio. O atentado «se cometió en un momento en que grandes facciones de la población musulmana de Indonesia expresaban su creciente malestar por el papel que había adoptado Australia en la separación de Timor-Leste de Indonesia» (Kern. S.d. 218).

Em 2003 em Março duas explosões no aeroporto e uma no porto em Davao, nas Filipinas deixavam 38 mortos. No mesmo ano, em Agosto um bombardeio no JW Marriott Hotel em Jacarta mataria 12 pessoas e feria 150.

A 9 de Setembro de 2004 uma bomba de grande potência explodiria perto da embaixada australiana no centro de Jacarta, matando 12 indonésios e cerca de 200 ficariam feridos.

A 2 de Outubro de 2005, homens-bomba causam 3 explosões a sul de Bali, em Jimbaran e Kuta, matando 23 pessoas entre nativos, estrangeiros e os três terroristas suicidas. Mais de cem pessoas ficariam feridos.

Segundo Kern em “Terrorismo en el Sudeste Asiático”, apesar dos atentados terem como origem a JI, os motivos não estão ainda claros. Determinados analistas referem que o objectivo da JI pode ser debilitar o governo democrático da Indonésia, outros crêem que a fúria ou descontentamento é para com os ocidentais e não contra as autoridades locais.



[1] O movimento Darum Islam de carácter violento seria fundado por Sekarmadji Maridjan Kartosuwirjo, em 1948. Kartosuwirjo seria capturado e executado pelo governo indonésio em 1962;

[2] Mujahideen é a forma plural de mujadih que significa “combatente” ou “alguém que se empenha na jihad (luta)”. O termo é frequentemente traduzido como “guerreiro santo”. O conceito popularizou-se graças ao mass media no final do século XX aplicando-se exclusivamente a combatentes armadas que se inspiraram no fundamentalismo islâmico. É de salientar que nem sempre tem um carácter religioso;

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

"Perigo ou promessa na Coreia do Norte?"

Artigo de opinião de Javier Solana (Ex-Alto Representante dos Negócios Estrangeiros da UE e ex-secretário-geral da NATO), sobre a Coreia do Norte e a recente morte de Kim Jong-il, que abalou o país. Podem encontrar o artigo aqui.


«Dois dias após o falecimento do líder da Coreia do Norte, Kim Jong-il, num comboio no seu país, as autoridades da Coreia do Sul ainda não tinham conhecimento do facto. Entretanto, as autoridades americanas pareciam perdidas, com o Departamento de Estado limitando-se a reconhecer a existência de alguns comunicados de imprensa que mencionavam a sua morte.

A incapacidade dos serviços de informação da Coreia do Sul e dos Estados Unidos para captar algum sinal do que tinha acontecido comprova o carácter opaco do regime da Coreia do Norte, mas também testemunha as deficiências da Coreia do Sul e dos EUA. Apesar dos aviões e satélites americanos vigiarem a Coreia do Norte, de dia e de noite, e as antenas mais sensíveis cobrirem a fronteira entre o norte e o sul da Coreia, sabemos muito pouco daquele país, dado que toda a informação vital está restrita a um pequeno grupo de dirigentes obcecados com o secretismo.

A mudança de líder está a ter lugar no pior momento possível. É sabido que os líderes chineses esperavam que Kim Jong-il sobrevivesse durante o tempo necessário para consolidar o apoio entre as várias facções do país à sucessão do seu filho, Kim Jong-un.

Todos os atributos simbólicos do poder foram transferidos para Kim Jong-un – a sua posição protocolar em cerimónias fúnebres, a Presidência da Comissão Militar e inclusivamente a máxima hierarquia no partido governante – com uma rapidez considerável. Mas este facto não tornará menos difícil o processo de transição do poder a um jovem com menos de 30 anos numa sociedade em que os chefes militares veteranos detêm uma parte importante do mesmo.

A situação económica, que continua a ser bastante precária, com muitas pessoas quase a passarem fome, constitui outro desafio fundamental. Dois exemplos bastam para ilustrar a situação: o preço do arroz triplicou, enquanto o consumo de electricidade diminuiu dois terços de há 20 anos a esta parte.

As minhas recordações pessoais da Coreia do Norte, de há cerca de dez anos, são de um país pobre e deprimido. Pyongyang, a capital, era obscura e deserta, iluminando-se à passagem da caravana que nos conduzia das casas de protocolo à Opera House, para voltar depois à obscuridade. Aquando da sua entrada na Opera House, Kim Jong-il foi recebido com o mesmo fervor com que hoje se chora a sua morte.

A minha viagem teve lugar em Abril de 2002, numa época de algum optimismo. A União Europeia tinha aderido a um acordo iniciado pelas duas Coreias e pelos Estados Unidos, no âmbito do programa da Organização para o Desenvolvimento da Energia da Península da Coreia, com o objectivo de persuadir a Coreia do Norte a congelar e posteriormente desmantelar o seu programa nuclear. Em troca, seriam construídos dois reactores nucleares de água leve para a produção de energia eléctrica e seriam fornecidas 500.000 tm de petróleo, por ano, até à entrada em funcionamento do primeiro reator. Por sua vez, a UE iniciaria um extenso projecto de ajuda humanitária. As conversações com Kim Jong-il e seus colaboradores pareciam promissoras.

Infelizmente, o acordo teve curta duração. Em 2003, a Coreia do Norte abandonou o Tratado de Não Proliferação. A partir desse momento desvaneceu-se todo o optimismo, até ao reinício posterior dos contactos num formato complexo a seis (China, Rússia, EUA, Japão e as duas Coreias) que continuaram, com altos e baixos, até finais de 2007. Depois dos incidentes marítimos de 2009 e 2010, em que as forças da Coreia do Norte atacaram a Coreia do Sul, praticamente não tem havido contacto entre as duas Coreias.

Dado o comportamento da Coreia do Norte nos últimos dez anos, uma mudança súbita de liderança aumenta a ameaça de ocorrência de incidentes inesperados. Para limitar este risco, é essencial manter com a China relações o mais transparentes possível. A China é quem tem os contactos mais directos com a Coreia do Norte e é quem pode catalisar, melhor que ninguém, a recuperação das negociações a seis.

A China reconhece que a Coreia do Norte não pode subsistir na sua forma actual e gostaria de ver os seus líderes transformarem a economia sem alterações políticas substanciais. Será isto possível? Poderá isto ser feito a um ritmo que transmita aos outros actores regionais confiança em que a evolução será previsível? Para a China, os problemas são avaliados de acordo com a história do seu país e a partir de uma óptica de política interna – tanto mais quanto mais próximos estejam da sua fronteira. Para o Ocidente, e muito particularmente para os EUA, todos os problemas devem ter uma solução num período finito de tempo. Enquanto os EUA segmentam os problemas e tentam encontrar soluções para cada uma das partes, a China considera os problemas políticos sem pressas, como um processo prolongado, que pode inclusivamente não ter solução.

Para além das conversações a seis, é necessária a criação de um quadro de onde possa emergir um diálogo cooperativo entre os EUA e a China. No caso da Coreia - como recorda Christopher Hill, um dos negociadores mais eficazes dos EUA nestes assuntos – Os EUA deveriam expressar claramente que nenhuma solução para a península da Coreia dividida representaria uma perda estratégica para a China. Após o armistício que pôs fim à Guerra da Coreia em 1953, foi estabelecido o paralelo 38 como o limite para a presença das forças norte-americanas e não devemos esquecer a importância que aquela guerra teve para a China.

Esta abordagem pode ser uma forma de estabilizar a região durante este período de elevada incerteza. Poderá haver outras formas. A progressiva abertura de Myanmar (Burma) demonstra que uma mudança política potencialmente significativa não necessita de ser acompanhada de instabilidade regional. No caso da Coreia do Norte, em que estão em jogo armas nucleares, não se pode permitir que seja.»

domingo, 8 de janeiro de 2012

“A Sociedade Invisível”, um novo olhar para um novo mundo

“O essencial é invisível aos olhos”.
Antoine de Saint Exupéry

O livro “A sociedade invisível”, de Daniel Innerarity, apresenta uma visão do mundo actual   caracterizado pela complexidade, com problemas de legitimidade, “em que tudo o que se mostra se torna suspeito” e em que se crê que a realidade é uma “montagem”. Segundo a visão do autor, que recebeu o prémio Espasa Ensaio 2004, num mundo de manipulação e simulação, o verdadeiramente real torna-se uma obsessão, da mesma forma que cresce a insegurança num mundo cada vez mais seguro. Daniel Innerarity, que pode ser considerado um visionário, leva-nos a questionar toda a realidade, inclusive as nossas relações pessoais, mostrando-nos o real em dualismos, entre o que julgamos ser e o que realmente é, entre o predominante insignificante e as excepções essenciais.

Na sociedade descrita no livro, própria de um mundo global, onde por exemplo guerra, território, comunicação, medo e economia deixaram de ser o que eram, a “distribuição do poder é mais volátil, a determinação das causas e de responsabilidades é mais completa, os interlocutores são instáveis, as presenças são virtuais e os inimigos difusos”. Não esquecendo que o espaço é algo dinâmico e “não precede as acções mas o contrário”, os Estados começam a perder algumas das suas competências tradicionais, por exemplo a nível económico, onde as multinacionais operam sob a égide de um mercado global e não tanto dentro de um Estado. Há inclusive cada vez mais regiões, como o País Basco, que estabelecem relações com o exterior sem a ajuda dos governos centrais dos seus países. Na sociedade actual, também o cidadão “tem que estar um pouco para além de si próprio e do seu espaço nacional” (Patrocínio, p. 5), deixando de ser, por exemplo, português ou chinês, para adquirir uma cidadania muito mais abrangente.

Este espaço fluído, sem fronteiras, é o cenário ideal para o terrorismo. Os terroristas estão disseminados por todos os continentes, sobretudo nos países que não raras vezes atacam. O terrorismo é virtual também pelo facto de, em vez de atacar vítimas concretas, procurar sobretudo modificar comportamentos, lançando a suspeita e a confusão, através do aproveitamento do medo levado ao extremo.

Com efeito, perante um ataque terrorista ou uma ameaça, os Estados sentem-se impelidos a fazer algo, sobretudo algo visível sob a capa de heroísmo, com vista a unificar os cidadãos e a legitimar a sua autoridade. No contra-terrorismo, é essencial apresentar um rosto do inimigo, ainda que ele seja invisível. As soluções encontradas para fazer face ao terrorismo devem ser reavaliadas, não só porque as guerras convencionais não se encaixam no fenómeno de terrorismo – dado que o inimigo joga num campo de batalha diferente e não existem vencedores nem vencidos – mas também pelos perigos que comportam, em especial quando civis são atacados. “Quando nos convencemos que a guerra é a única forma de prevalecer (como os da jihadistas fizeram), tornamo-nos hipócritas em relação à nossa causa (tal como os islamistas) e arriscamo-nos a apagar a distinção entre guerreiros e não combatentes” (Ken e Dunne, 2002, p. 13).

Daniel Innerarity dá ainda conta de que o anti-terrorismo por vezes serve também o propósito de desviar as atenções de outros temas, já que em questões que aparecem na opinião pública como de interesse nacional e de defesa, quem mostrar divergências políticas ter de apresentar um bom motivo.

Se o “terrorismo não poderia existir sem comunicação”, sendo o seu comportamento moldado a enviar mensagens (Kushner, 1998, p. 209), tampouco podiam os políticos viver sem ela numa sociedade do espectáculo, onde, por exemplo, o perfil de um candidato político é mais importante que o seu partido, como destacam Afonso de Albuquerque e Márcia Ribeiro Dias (2002, p. 314).

Daniel Innerarity vem pôr em causa a ideia de transparência das sociedades democráticas e falar numa “cegueira própria da excessiva visibilidade” (2004, p. 51), algo que a Al-Qaeda compreende bem, daí não encher a comunicação social, mas passar esporadicamente mensagens curtas e fortes, garantindo, desta forma, a atenção de um maior número de pessoas.

Na política actual, “a celebridade é mais importante que a competência”, escreve Innerarity (2004, p. 146). Muitas vezes, para diminuir a visibilidade de certas medidas impopulares, os políticos acertam discussões e fait-divers com vista a entreter o público, desviando-o do essencial.

Nesta lógica de representação e de sobrevalorização da política, num contexto de receio de um inimigo desconhecido, os governantes agem, por vezes, em demasia, sem premeditação. Ao medir a importância de um risco, acabam por criar novos riscos, adverte Daniel Innerarity. Isso tem-se visto com várias medidas islamofóbicas.

Daniel Innerarity conclui, assim, que “as pessoas têm o direito de estar a salvo também dos seus protectores” (2004, p. 172), já que, com certas atitudes, algumas políticas acabam por aumentar o sentimento de insegurança, saindo os seus autores quase sempre incólumes. “Muitos conflitos emergem a partir do que as partes pensam que está a acontecer – das suas ansiedades, preconceitos, medos e incertezas – e não de qualquer fenómeno que seja, de facto ameaçador”, disse Robert C. North (Santos, 2009, p. 176).

Nesta sociedade, com futuro incerto, em que o presente já não serve de exemplo, Daniel Innerarity aponta como saída a utopia, que impele as pessoas a quererem diferente e, logo, a visionarem alternativas que possam ser úteis.

Ao olhar para o provir, Mihaly Simai considera que os “países precisam de entender completamente as implicações positivas da sua interconectividade e interdependência e a necessidade de incorporar  nas suas políticas normas éticas como previsibilidade, responsabilidade e solidariedade” (1994, p 348).

No futuro, onde a importância do Estado é incerta – pelo menos na sua forma actual – e onde as políticas devem estar em constante mudança e adequação, os cidadãos devem partilhar medos e riscos, conseguindo assim colocar-se mais facilmente no lugar do outro e trabalhar em conjunto para soluções que beneficiem todos. Neste futuro, em que também o tempo se torna invisível, surge ainda uma maior necessidade de pensar nas gerações vindouras, tão coladas às actuais.

Concluiu-se assim que, apesar da invisibilidade, incerteza e confusão do mundo actual, ele está cheio de oportunidades, que podem ser aproveitadas para construir um mundo melhor.   

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Irmandade Muçulmana


Numa altura em que é dado como certo que a Irmandade Muçulmana seja a grande vencedora das eleições a ocorrer no Egipto, impera clarificar alguns pontos sobre a organização.

Irmandade Muçulmana

A Irmandade Muçulmana (jamiat al-Ikhwan al-muslimun) Sociedade de Irmãos Muçulmanos é uma organização fundamentalista islâmica, fundada em 1928 no Egipto, por Hassan al Banna. Pretendia unir as nações islâmicas sob um único califado, de acordo com o sunismo. Da doutrina da organização saliento a rejeição ao colonialismo e aos valores ocidentais, retorno à pureza do Islão, recurso à Jihad, unificação da Umma sob um califado unificado, abolição de todas as instituições implementadas pelos ocidentais no mundo muçulmano e ainda eliminação de Israel.

Na opinião de al Banna o Islão teria perdido o domínio sob a sociedade, uma vez que muitos muçulmanos se haviam corrompido por ideais ocidentais. A Shari´a, lei islâmica, seria então a solução para tal problemática e deveria ser aplicada a todos os níveis da vida humana e da sociedade, como demonstra o lema da própria organização, «Alá é o nosso objectivo. O Profeta o nosso líder. O Alcorão a nossa lei. Jihad é o nosso caminho. Morrer pelo caminho de Alá é a nossa maior esperança».

Rapidamente a organização tornou-se numa força política com relativa expressão no Egipto. À altura a organização pretendia libertar a região dos estrangeiros e infiéis, estabelecendo então um Estado islâmico unificado.

Se inicialmente a Irmandade Muçulmana detinha um carácter espiritual ou religioso, a partir de sensivelmente de 1938 torna-se num movimento político.

Hassan al-Banna cria então uma organização paramilitar, inspirado nos “camisas negras” de Mussolini, cujo lema era “acção, obediência, silencio, fé e luta”. De carácter secreto dispunha de uma agência de inteligência com intuito de coordenar ataques terroristas e/ou assassinatos. Paralelamente construiu fábricas, escolas e hospitais, conseguiu ainda infiltrar-se em sindicatos e nas forças armadas. Consequentemente nos finais da década de 40 do século XX, a Irmandade Muçulmana era considerado um “Estado dentro do Estado”, visto que a organização acercava todos os sectores da sociedade.

Até então a organização não tinha enfrentado nem a Coroa nem os ingleses que detinham imensos interesses na região. Convém salientar que o Egipto tornou-se independente a 22 de Fevereiro de 1922, mas ainda assim o Reino Unido mantinha as suas tropas no canal do Suez, com a assinatura do tratado anglo-egípcio em 1936. Só nos finais dos anos 40, após deter uma capacidade orgânica e militar, a Irmandade Muçulmana encetou ataques terroristas contra os interesses judeus e ingleses no território.

A tensão entre a organização e o governo aumentaria. A tentativa frustrada de um golpe de estado contra a monarquia e o desmantelamento do mesmo pelo Primeiro-Ministro Nuqrashi do Rei Farouk, culminou no assassinato daquele em 1949, e posteriormente como retaliação na morte de Hassan al-Banna e de outros membros da organização. Apesar da morte do líder, aquela continuou a actividade que vinha desempenhando desde os anos 20. Hassan al Hudaibi tornar-se-ia o Guia da Irmandade.

No Egipto, um golpe militar acabava com a monarquia, estabelecendo o regime militar a 23 de Julho de 1952. Impera salientar que no decorrer da mudança de regime, a Irmandade Muçulmana apoiou o “Movimento dos Oficiais Livres” liderados por Gamal Abdel Nasser, Mohamed Naguid e Anuar El Sadat. Em 1954 a Irmandade Muçulmana era dissolvida pelas autoridades, mas a sua actividade continuava, mantendo-se como oposição ao governo.

Após Nasser, al-Sadat e Mubarak usaram a Irmandade como forma de diminuir a força da extrema-esquerda. A organização era aceite como grupo religioso mas sucumbia-se a um extremo controlo do governo.

É nos anos 90 que a Irmandade Muçulmana, a partir de três manifestos publicados, “Democracia Indispensável”, “Nossos Irmãos e Compatriotas Coptas” e ainda “Estatuto da Mulher”, se apresenta como um movimento democrático no Egipto, ainda assim não cessa o seu apoio a grupos Jihadistas, como o Hamas e a Jihad Islâmica.

Por diversas vezes a Irmandade Muçulmana foi impedida de concorrer às eleições como partido político, daí que os seus membros tenham candidatado como independentes ou então associados a outros partidos. Como é mencionado em a Importância Do Islamismo Político No Médio Oriente”, «(…) a Irmandade é tolerada até um certo nível, oficialmente é ilegal, não tem autorização para distribuir literatura ou para se reunir publicamente, e os seus membros são objecto de prisões periódicas. Todavia, a Irmandade é responsável pela publicação de dois jornais – Liwa' al-islam ("The Banner of Islam") e al-I'tisam, ("Adherence") –, mantém escritórios regionais e nacionais, faz declarações públicas e livros da autoria de “Irmãos” proeminentes são vendidos em livrarias». (Leal.2006:240)

Dada a sua dimensão, a Irmandade Muçulmana em termos estruturais é um movimento político-religioso, visto a acção política que encabeça e o estrito respeito pela Lei Islâmica. A organização deve obediência e fidelidade ao Guia Supremo, Mushid. É o Conselho Consultivo Geral, majlis al shura, que escolhe o Guia Supremo. Este é auxiliado por um Gabinete de Orientação, maktab ai irshad al´amm, e ainda por nove Comités Especializados.

Hassan al-Banna quando criou a organização «(…) insistiu na necessidade de assegurar a justiça social, cuja responsabilidade cabia ao Estado através da aplicação do imposto islâmico (zakat) e da sua redistribuição. (…) Propôs a reorganização da sociedade a partir de um Estado Islâmico. Relativamente aos castigos ordenados pelo Alcorão (os hudud), o fundador defendeu que estes não podiam ser aplicados numa sociedade verdadeiramente islâmica onde regenera a justiça. No plano internacional, H. al-Banna críticou o nacionalismo e sonhou com a reconstrução da Umma». (Idem.219).

Como referido trata-se de um movimento internacionalizado, desde logo expandiu-se além fronteiras egípcias. Em 1944 era criada na Síria a Irmandade Muçulmana; em 1946 era criada uma secção na Jordânia; em 1954 era a vez do Sudão; em 1946 era estabelecida na Palestina a Irmandade Muçulmana; posteriormente era a vez de Marrocos, Tunísia e Argélia, por volta da década de 70. No restante mundo islâmico, a organização expandiu-se sucessivamente até meados dos anos 90.

Impera salientar que a Irmandade Muçulmana foi o embrião para determinados grupos terroristas islâmicos, como o Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica, Al Qaeda e outros.

Bibliografia:

v LEAL, Catarina Mendes. (2006) “A Importância do Islamismo Político no Médio Oriente”, in http://www.dpp.pt/Lists/Pesquisa%20Avanada/Attachments/1366/infor_inter_2006_supl_V.pdf;

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A sociedade civil cipriota

Segundos dados do CIA Wold Fact Book, a ilha de Chipre tem cerca de 1 milhão e 120 mil habitantes, dos quais 77% são de etnia grega e 18% são turcos[1]. Os primeiros ocupam a zona Sul da ilha e os segundos estão sediados a Norte. No mapa abaixo podemos observar as áreas sob controlo da República de Chipre e da República Turca de Chipre. A destacar ainda a linha que divide o território, sendo que a área "cinzenta" é a chamada Buffer Zone. Nesta área, que ocupa a capital Nicósia, é onde se concentram as principais actividades intercomunitárias, que já foram previamente faladas e que merecerão atenção de novo mais adiante.
Achei importante uma caracterização da sociedade cipriota, seguindo os trabalhos de Kaymak, Lordos e Tocci. Estes três estudiosos debruçaram-se sobre o how the cypriots see themselves, através de sondagens de opinião, algo fulcral na minha pesquisa. Dado interessante para juntar às minhas pesquisas foi conseguido desde logo: os cipriotas partilham ideologias e valores, sendo que identificam as trajectórias culturais e históricas como o que os separa[2]. Acima de tudo, vêem-se como cipriotas. Apesar da já referida hifenização, olham-se como cipriotas e têm aspirações partilhadas para o futuro. Outro ponto em comum, mas que atrasa em muito um acordo é a desconfiança mútua, sendo este o cerne da sua divisão, a par da cultura e história. Eu acrescentaria incompreensão, pois muitos são os estudos (nomeadamente a iniciativa Chipre 2015) que sublinham que o ensino ainda demoniza em muito o “outro”, como se pode verificar também em Kanol quando diz “Currently, the education system in both parts of Cyprus functions as a nationalist ideology which demonizes the other part.[3] Além desta desconfiança mútua, os gregos-cipriotas desconfiam da Turquia (nomeadamente a proximidade em relação à ilha e presença militar) e os turcos-cipriotas manifestam reservas em relação à Grécia, à União Europeia e da Comunidade Internacional, sentindo que estes os votaram ao esquecimento. Ainda assim, ambas as comunidades mostram-se altamente receptivas a revisitar o seu passado, admitindo as suas falhas mas rejeitando em larga escala o recurso à violência ou a resolução do conflito por via armada. Isto aponta para uma conclusão interessante: em comparação com outros conflitos étnicos, como por exemplo os do Cáucuso ou os de África, o ódio étnico é muito mais baixo. Acrescentaria a isto, que ao contrário de outras crises, o engagement das forças de Gestão de Crise, neste caso a ONU, é muito inferior, limitando-se à resolução de ocasionais escaramuças, algo que também confere um estatuto diferente à questão. Por último, o descontentamento popular em relação à falta de acordo. Estes dados são muito importantes como ponto de partido para uma paz definitiva.
Característica interessante abordada pelos autores acima mencionados são os pontos de vista partilhados maioritariamente por ambas as comunidades. Quer turcos, quer gregos-cipriotas, qualquer que seja a solução encontrada para o futuro da ilha, vêem com bons olhos a unificação de certos aspectos que podem desempenhar uma melhoria significativa das suas qualidades de vida - Representação comum ao nível desportivo (de referir, a título de curiosidade, que nos diferentes campeonatos profissionais de futebol cipriota existe uma enorme comunidade atletas portugueses), estratégias comuns de luta contra o crime organizado, fomento da economia e indústria, protecção mútua do património histórico e cultural e estratégias de harmonização entre Grécia, Turquia e União Europeia. Outro ponto a referir que reforça esta ideia veiculada é o descontentamento em relação à situação actual, como algo que nada de bom traz à vida das pessoas. Ambos os lados discordam profundamente do settlement actual, mas até veriam com bons olhos uma solução de Federação. O problema está no “como”. A desconfiança dos turcos em relação a gregos e a noção de eventual perda de influência dos segundos é algo que ainda está por resolver.
cont.


[1] Cfr esta e mais informação em https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/cy.html consultado em Dezembro de 2011.

[2] Cfr em KAYMAK, Erol; LORDOS; Alexandro, TOCCI, Natalie, Building confidence in peace: public opinion and the Cyprus peace process, CEPS, Bruxelas, 2008.

[4] Cfr em www.cyprus2015.org.
[6] Cfr CONSTANTINOU, Costas, Aporias of Identity and the ‘Cyprus Problem’ disponível em http://academos.ro/sites/default/files/biblio-docs/207/constantinou_cyprus_aporia.pdf p.20 consultado em Dezembro 2011.