"O poder é o
afrodisíaco mais forte."
Henry Kissinger1.
O filme “Frost/Nixon”,
de Ron Howard, respira universalidade. Como observa J. Oberman, a
temática do filme, que conta a história de um apresentador de
televisão que consegue arrancar um pedido de desculpa
aos norte-americanos por parte de Richard Nixon pela seu envolvimento
no escândalo de operações ilegais contra a oposição durante a
campanha eleitoral de 1972, que culminou com a sua vitória
esmagadora, “não é o caso Watergate, mas as suas
consequências” (Oberman, 2008), que se relevaram imediatamente
indeléveis. Partindo do princípio de que o fenómeno do poder
constitui “uma realidade generalizável a todo o plano relacional”,
(Santos, 2007, 248), este filme aborda várias relações de poder.
Desde logo, a partir do
caso Watergate, o jornalismo tornou-se mais agressivo e fiscalizador
relativamente ao poder presidencial - até então encarado como quase
inquestionável – aproximando-se assim da qualificação que lhe é
atribuída de “Quarto Poder”. Muitos jornais passaram a assumir a
sua preferência política. Como espelho da sociedade ou como
precursor das ideias dominantes na mesma, o jornalismo, a partir
deste caso, despertou para o facto de os que políticos podem ter
segredos e “não devem ser confiáveis” (Browning, 2008). O caso
Watergate, resultante de um desejo de continuidade de poder político
por parte de Robert Nixon, trouxe desilusão e, como escreve Silvia
Browning, mudou bastante o cenário político, bem como as “políticas
internas e externas” dos EUA (Browning, 2008). De acordo com
Adriano Moreira, “a adesão ou repulsa” entre a população e
governo tem um efeito imediato sobre o poder efectivo (Moreira 2002,
255) de um Estado a nível internacional. Neste sentido, dentro
daquilo que o autor define como capacidade de acção colectiva
enquanto recurso disponível de um Estado – no âmbito do seu
poder potencial2
- encontra-se o grau de coesão nacional, o carisma da liderança e a
aceitação das chefias. Tudo isto saiu afectado com este episódio
de corrupção.
No
campo internacional, alguns autores acreditam que o caso Watergate
veio deteriorar ainda mais as relações dos Estados Unidos com a
Rússia, como Henry Kissinger, já que o relacionamento entre os dois
países paralisou em 1974, ano da renúncia do antigo presidente
norte-americano, mas Robert D. Schulzinger ressalva que apesar das
tentativas de aproximação antes dessa data, elas nunca obtiveram
resultados palpáveis (AAVV, 1993, 408).
Efectivamente,
o filme aborda várias questões da política externa norte-americana
durante a administração Nixon, uma das mais elogiadas neste campo.
Quando faleceu, alguns dos sucessores de Richard Nixon elogiaram os
êxitos da sua política no Vietmane, a tentativa de acordar com a
Rússia uma redução de armamento (numa época em que se temia uma
guerra nuclear) e o facto de ter aberto o caminho para a aceitação
da China na comunidade internacional, colocando, assim, os Estados
Unidos na linha da frente da política internacional.
Numa
das quatro entrevistas a David Frost, Richard Nixon disse que a
guerra do Vietname, uma “herança” nas suas palavras, foi um
“teste à credibilidade norte-americana”. Henry Kissinger –
para quem Richard Nixon era “altamente sofisticado em questões
internacionais” (Kissinger, 1996, 590) - explica que a
administração do presidente envolvido no caso Watergate procurava
no Vietname “uma solução que permitisse à América continuar a
sua função internacional no pós-guerra, a de protector e paladino
dos povos livres”. O mesmo autor reforça que o antigo Chefe de
Estado norte-americano “dava importância à credibilidade e à
honra, porque estas definiam a capacidade da América para moldar uma
ordem internacional pacífica” (Kissinger, 1996, 588). A
participação na guerra do Vietname acabou por revelar-se útil numa
altura em que era “necessária uma importante reformulação da
política externa americana”, escreve ainda Kissinger (1996, 613).
Além
da importância de participar numa conflito dentro da Guerra Fria,
onde também estava a Rússia e, neste sentido, em jogo o poder
militar de cada uma das potências que “dividiam” o mundo na
altura, era importante para Richard Nixon travar o comunismo, uma
ideologia opositora ao capitalismo norte-americano e que o antigo
Chefe de Estado encarava como uma ameaça. Segundo David Frost, Nixon
disse que o Cambodja era o “quartel” de toda a operação
comunista no Vietname do Sul para justificar a intervenção naquele
país.
Porém,
ao contrário do esperado e do facto de possuir mais recursos
materiais e imateriais do que o adversário, os Estados Unidos
acabaram por sair derrotados no Vietname pela guerrilha das tropas do
Exército do Vietname do Norte. Neste sentido, pode então falar-se
de poder estrutural, que corresponde à “autoridade para determinar
as regras do jogo e determinar a forma como os outros jogarão o
jogo” (Holsti, 1995, 126) e que ditou a vitória dos vietnamitas do
Norte, apoiados logisticamente pela Rússia, Coreia do Norte e China,
países que não se envolveram efectivamente no conflito. Ainda no
âmbito da teoria dos jogos, talvez tenha faltado aos Estados Unidos
um maior debruçamento sobre o “second-guessing”, isto é, uma
reinterpretação ou uma reavaliação dos processos intelectuais do
adversário para ganhar vantagem sobre o oponente, como é defendido
por James E. Dougherty e Robert L. Pfaltzgraff (Dougherty e
Pfaltzgraff, 1981, 513).
A
derrota neste território não só prejudicou a intenção dos EUA de
travar a expansão do comunismo, como teve um forte impacto no
poderio militar do país, o que se reflectiu no chamado “Síndrome
do Vietname”, traduzido numa espécie de trauma que levou os
norte-americanos a mostrarem pouca abertura para a participação do
país em conflitos bélicos no exterior e, consequentemente, numa
mudança na política exterior da América até à eleição de
Ronald Reagan, em 1980.
No
filme “Frost/Nixon”, o antigo presidente norte-americano
mostra-se insatisfeito por as pessoas estarem apenas preocupadas com
o caso Watergate e esquecerem os feitos que conseguiu a nível
internacional. Porém, na política externa, existe uma forma de
poder denominada “soft power”, à luz da qual o modelo de
funcionamento político interno constitui um exemplo e uma forma de
persuadir os outros, como explica Victor Marques dos Santos (Santos,
2007, 282). Por outras palavras, o facto de, pela primeira vez, um
país como os Estados Unidos ter um presidente pouco merecedor da
confiança do povo afectou a poder do país a nível internacional,
ao expor uma das suas fragilidades. Este motivo explica porque é que
Richard Nixon é sobretudo recordado na história da corrupção
política, como remata o filme.
A
ideia de que o poder está intrinsecamente ligado ao interesse de um
país, defendida por Hans J. Morgenthau (Morgenthau, 1993, 10), vai
ao encontro daquilo que Nixon responde na entrevista a David Frost
para justificar o seu abuso de poder na invasão da sede do Comité
Nacional Democrata: “Quando um presidente faz algo, significa que
isso não é ilegal”.
A
questão do poder está também ligada à origem do próprio caso
Watergate ou não fosse a invasão dos escritórios do principal
partido da oposição uma acção levada a cabo no sentido de Richard
Nixon assegurar a sua permanência no poder.
A
falta de coesão nacional - um elemento importante na política
externa, como anteriormente referido - também foi notória em torno
do perdão concebido por Gerald R. Ford ao seu antecessor pelo
envolvimento no caso Watergate, uma decisão que se traduziu numa
polarização de um país já traumatizado pelo factos relativos ao
escândalo. Enquanto alguns cidadãos entendiam que o antigo
governante deveria ir a julgamento, outros encaravam a renúncia como
suficiente e Nixon como uma vítima. Pode dizer-se que também este
perdão presidencial, enquadrado num direito constitucional,
constituiu um acto de poder.
A
problemática do poder, que atravessa todo o filme, é também
visível na relação entre o entrevistador e o antigo presidente, já
que ambos procuram inverter o rumo das suas vidas com as entrevistas,
num “duelo”, como inicialmente referem, em que só um podia
ganhar. Nesta perspectiva é levada ao extremo a definição de
Mongethau, que encara o poder como “tudo aquilo que estabelece e
mantém o controlo do homem sobre o homem” (Mongethau, 1993, 11).
Nesta
busca do poder, a preparação, dita estratégia, assume um papel
fundamental, como é notório na parte – essencial no andamento da
história – em que o antigo governante norte-americano liga a David
Frost, arrasado pelo seu fraco desempenho nas entrevistas até então,
para o incitar a preparar a ultima entrevista, dedicada ao escândalo
Watergate. Nesta conversa, dois homens que nasceram do nada e que se
tornaram personalidades importantes compartem o medo de regressar à
estaca zero, numa assunção de que o poder é algo efémero e em
permanente construção.
O
próprio realizador, Rod Howard, disse aos jornalistas, ainda antes
da estreia, que “Frost/Nixon” não é um filme sobre política,
mas antes uma história humana sobre o facto de alguém que está “no
fundo” e a “tentar sair dessa situação usando todas as
ferramentas que se tem ao alcance”.
Deste
filme pode ainda concluir-se que numa luta de poder nem sempre existe
um total vencedor e um total vencido, já que se David Frost
conseguiu a confissão que tanto ansiava, Richard Nixon soltou, na
entrevista, o pedido de desculpas ao povo da América pelo qual a sua
consciência suplicava.
Esta
transversalidade das diferentes formas de poder que ressaltam do
filme tornam-no numa lição universal, quer para jornalistas,
políticos ou diplomatas, quer para cada indivíduo que queira
entender algumas dinâmicas da sociedade em que se insere.
Bibliografia:
- ARENAL, Celestino del (1990), Introducción a las Relaciones Internacionales, Madrid Tecnos (Citado por Victor Marques dos Santos em Teoria das Relações Internacionais - Cooperação e Conflito na Sociedade Internacional).
- BROWNING, Silvia (2008), “Watergate had a great impact on the American Political scene”, in www.mightystudents.com (consultado em Novembro de 2010).
- DOUGHERTY, James E., PFALTZGRAFF, Robert (1981), Contending Theories of International Relations, A Comprehensive Survey, Nova Iorque, Harper & Row. (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
- FIRESTONE, Bernard J. e UGRINKSY, Alexej (1993), Gerald R. Ford and the politics of post-Watergate America, Westport, Greenwood.
- HOBERMAN, Jim (2008), “Ron Howard's Frost/Nixon explores Watergate's aftermath”, in www.citypages.com (consultado em Novembro de 2010).
- HOLSTI, K. J. (1995), International Politics. A Framework for Analysis, Englewood Cliffs, N. J. (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
- MOREIRA, Adriano (1989), Relações entre as grandes potências, Lisboa, Instituto de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
- MOREIRA, Adriano (2002), Teoria das Relações Internacionais, Coimbra, Almedina (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
- MORGENTHAU, Hans J. (1993), Politics Among Nations The Struggle for Power and Peace, Nova Iorque, McGraw-Hill (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
- SANTOS, Victor Marques dos (2007), Introdução à Teoria das Relações Internacionais, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
- SANTOS, Victor Marques dos (2009), Teoria das Relações Internacionais - Cooperação e Conflito na Sociedade Internacional, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
1Conselheiro
político e confidente de Richard Nixon e co-vencedor do Prémio
Nobel da Paz em 1973 pelo seu papel na obtenção do acordo de
cessar-fogo na Guerra do Vietname.
2Celestino
del Arenal (Arenal,1983, 510) distingue poder potencial de
poder actual, ou seja, poder real de poder efectivo,
segundo Vítor Marques dos Santos (Santos, 2007,257)
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