quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A ONU no terreno cipriota

A resolução 186 de 1964[1] da ONU legitima a acção da UNFICYP como força mandatada para (re)estabelecer a paz. Para além disto e na sua essência apela ao Governo que mantenha a paz e a segurança e recomenda vivamente aos líderes das comunidades que actuem moderação. A missão inicial teve como consultores os governos de Chipre, Turquia e Grécia. Para além destes, o atrás mencionado Reino Unido. Até 15 de Dezembro, a resolução 1986 de 2011 dá legitimidade à ONU. Tendo em conta que o objecto deste trabalho são os cipriotas em si, não podia deixar de ter em atenção o seguinte: “(…) the Secretary-General’s firm belief that the responsibility for finding a solution lies first and foremost with the Cypriots themselves (…)”[2]. Este ponto manifestado na resolução contém subjacente a convicção da ONU que os cipriotas terão de ser integrados numa solução de futuro, independentemente do seu papel. E de certa forma, um aviso aos políticos. Aliás, nesta resolução está contida também recomendação interessante: o aviso que os políticos devem usar de retórica positiva, algo que tem sido também pedido por alguns académicos e grupos e iniciativas civis.
Têm sido evidentes os esforços da ONU, no que diz respeito à Buffer Zone e à Geen Line, o estímulo dos contactos constantes das comunidades, por forma a promover uma constante “união” de esforços “gregos” e “turcos”, com actividades que visam a colaboração ao nível económico, agrícola e de convívio social, bem como em actividades de carácter humanitário[1]. Este papel da ONU é sem dúvida importante para a inserção das populações civis na construção de um novo Chipre. De resto, a Buffer Zone é dos mais ricos territórios da ilha, ao nível da agricultura, da fauna e da flora, como tal parece-me firme intenção da ONU aproveitar estes dados para promover a união de povos. Pelo menos, é uma excelente oportunidade! Útil ou não? Logo veremos!
(cont)

[1] Cfr o texto da Resolução da ONU disponível em http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/186(1964) consultado em Dezembro de 2011.
[2] Cfr o texto da Resolução 1986 de 2011 disponível emhttp://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unficyp/resolutions.shtml.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Fundamentalismo Islâmico


Numa altura que assistimos a associações erradas de determinados conceitos, deixo aqui exposta uma exposição do conceito “fundamentalismo islâmico”

Fundamentalismo

Contrariamente ao que podemos pensar, o termo fundamentalismo surge pela primeira vez, nos EUA, em 1920, sendo atribuída a sua existência aos cristãos protestantes anglo-saxões. Na época (1910 – 1915) teólogos protestantes haviam compilado artigos de natureza doutrinária, “ The Fundamentals”, uma reacção contra o declínio moral e espiritual que se alastrava no seio do protestantismo. «Em 1920, Curtis Lee Laws, Director do Jornal Baptista “The Watchman Examiner”, chegou a escrever que um fundamentalista é toda e qualquer pessoa que procura travar uma luta encarniçada em prole dos fundamentos da sua fé» (Costa. 2001:17).

Os seus seguidores e apoiantes seriam então denominados de “Fundamentalists”.

Fundamentalismo Islâmico

Actualmente o termo, fundamentalismo, está intrinsecamente relacionado com o Islão, grandemente ao 11 de Setembro, e à “propaganda” difundida pelo Ocidente, na “cruzada mundial contra o terror”.

Impera referir que no Islão não existindo uma separação entre esfera secular e religiosa, o fundamentalismo é uma força de carácter político.

São várias as causas que contribuíram para a existência do fundamentalismo islâmico, mas saliento aquela que influenciou grandemente o fenómeno, a imposição Ocidental de sistemas políticas que não vigaram e a tentativa dos países muçulmanos mantê-los impropriamente. Como refere Yves Lacoste em ''A Geopolítica do Mediterrâneo'' (2008), são “as brasas mal apagadas da História” que determinaram o rumo de determinados países árabes, especialmente no Mediterrâneo e Médio Oriente, onde estiveram sob colonialismo maioritariamente francês e britânico.

Mas outras causas podemos identificar, como a crise de identidade do mundo árabe, uma reacção ao laicismo, ao reformismo e à secularização, uma reacção etnocêntrica e xenófoba especialmente contra o Ocidente, a divisão do Império Otomano e o surgimento de inúmeros e diferente Estados contribuiu para o surgimento dos nacionalismos e ideologias transnacionais com o pan-arabismo, sentimento de humilhação, repulsa simultânea pelo colonialismo, neocolonialismo e pelo socialismo marxista, crise económica e social provocada pelo êxodo rural e pela urbanização explosiva e ainda o sentimento de humilhação dada a subordinação do mundo árabe em vários aspectos a grandes potências ocidentais.

Identificadas as causas é perceptível afirmar que o fundamentalismo islâmico tem três aspectos essenciais, como salienta Teresa de Almeida e Silva em “Islão e Fundamentalismo Islâmico” (2011), o totalitarismo, uma visão literalista da Shari´a e ainda ser coercivo e repressivo. É totalitário porque regula a vida social do indivíduo, a privada e a pública. Pressupõem que os princípios do Alcorão devem ser aplicados rigorosamente, daí que estabeleça uma visão literalista da Shari´a. E por fim é coercivo e repressivo dado não ser uma alternativa mas sim uma imposição, de carácter repressivo.

Falar de fundamentalismo islâmico é debruçar sobre um conceito de extrema complexidade. É certo que o conceito de fundamentalismo é extremamente recente, mas o mesmo não podemos afirmar do fundamentalismo islâmico. Analisando a história do Islão, encontramos vários indícios de fundamentalistas desde os seus primórdios, logo após a morte de Maomé, O Profeta, até à actualidade.

Impera salientar que «o Fundamentalismo Islâmico envolve o esforço para fazer regressar os muçulmanos ao caminho do Islão, o que suscita uma onda afirmativa de sentimento islâmico que penetra em todo o Mundo Islâmico, esgrimindo os princípios islâmicos fundamentais para a satisfação das necessidades e dos desafios da época contemporânea» (Costa.2011:17).

Bibliografia

COSTA, Hélder Santos (2001) Revivalismo Islâmico, Lisboa, ISCSP.

LACOSTA, Yves. (2008) A Geopolítica do Mediterrâneo, Edições 70.

SILVA, Teresa de Almeida e. (2011) Islão, Fundamentalismo Islâmico das Origens ao Século XXI, Pactor, Lisboa.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Economic Intelligence, uma estratégia para lá da crise

O livro Estudos de Intelligence, coordenado por Pedro Borges Graça, oferece aos leitores uma visão abrangente da Intelligence em várias vertentes, como militar, económica e civil, incidindo sobretudo na situação portuguesa e recorrendo não raras vezes a elementos de comparação do exterior. É um manual ideal para alunos e cidadãos em geral interessados na temática. Entre tantos pontos de interessante abordagem, vamos focar-nos na Intelligence aplicada à economia, por ser das áreas mais recentes e onde se perspectiva um maior crescimento.

“No actual processo de globalização económica em curso, estamos num momento de passagem da Era da Informação para a Era da Intelligence e no mundo dos negócios os custos da ignorância saem muito mais caros que os custos do conhecimento” (Graça, 2011, p. 178). É com esta frase que Pedro Borges Graça fecha o livro, mas a obra podia ter sido iniciada com ela, já que encerra em si a justificação da Intelligence não só económica, mas em todos as suas aplicações.

Apesar de a relevância do conhecimento que levou ao nascimento da Era da Informação não ser de pôr de parte, a verdade é que vivemos numa época com excesso de informação, algo que acaba por ser contraproducente, não só para a divulgação de ideias – dado que as pessoas tendem a dispersar-se e muitas vezes a desligarem perante tanta informação -, mas também para o encontro com a informação realmente importante. Um excesso de informação pode, efectivamente, servir para desviar os outros do essencial.

Num mundo cada vez mais complexo e interligado, caracterizado por uma nova ordem mundial em que surgem novos actores e em que os Estados perdem cada vez mais campo de acção para outros grupos, como organizações regionais, organizações não governamentais, grupos terroristas e grandes grupos económicos, é compreensível que as empresas assumam competências que antes estavam confinadas ao Estado, como por exemplo a defesa de objectivos económicos, e que todos estes actores, entre outros, invistam cada vez mais em Intelligence. Por exemplo, o Hezbollah possui uma “rede de Intelligence espalhada um pouco por todo o mundo, servindo-se dos seus apoiantes pare recolher informações”, de acordo com Bruno Almeida Marques (Graça, 2011, p. 78). O facto de o Hezbollah ter conseguido desmascarar agentes da CIA no Líbano, em Novembro deste ano, demonstra a dimensão desta realidade e a urgência de os Estados e de outros actores investirem verdadeiramente em Intelligence.


Ao abordar este assunto, António Rebelo de Sousa, presidente da Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento, realça que, apesar dos riscos ligados ao crime organizado e ao terrorismo, já não é essa a maior preocupação na Intelligence económica, mas sim a importância de estar na linha da frente em tecnologia, a relação com a concorrência directos e a necessidade de evitar riscos.

António Rebelo de Sousa fala no papel do Estado, que pode assumir a responsabilidade pela Intelligence, congregando interesses de várias empresas sob a mesma estratégia. Cada vez mais se vêem casos de interferência dos governos - acompanhando assim uma tendência de divórcio relativamente ao liberalismo puro e às suas consequências – sobretudo devido à falta de recursos financeiros por parte das empresas para investirem em Intelligence.

Destaque também para os benefícios de trocas de informações entre vários actores ou serviços, o que se torna mais eficaz quando os objectivos tendem a aproximar-se. Pedro Borges Graça sublinha que, “sendo a globalização em curso um fenómeno com uma forte componente económica e que influencia hoje marcadamente o comportamento dos Estados e tem um impacto directo nas soberanias nacionais, a actividade das empresas é portanto de facto estratégica” (Graça, 2006). Duncan Campbell, ao distinguir a Inteligência Competitiva ou Inteligência Micro-económica, da Inteligência Macro-económica (que visa conhecer as estratégias económicas de outros países), diz que a Intelligence económica, seja ela de que tipo for, “pode funcionar em forte ligação com outras formas de recolha de Intelligence”, como por exemplo dando conta de venda de armamento (Campbell, 2001, p. 97). O mesmo autor dá o exemplo das nações “párias”, como a Coreia do Norte, relativamente às quais conhecer as informações das suas empresas serve mais para “aferir as condições políticas e de estabilidade” do que propriamente conhecer as vantagens comerciais (Ibidem). No sentido inverso, Duncan Campbell diz que no início dos anos 90, a CIA terá fornecido informações às empresas norte-americanas “com o fito de que estas provocassem danos económicos” nas empresas europeias (Campbell, 2001, p. 134).

            
Nesta ligação entre Estado e empresas, António Rebelo de Sousa insiste na criação de mais instrumentos de intervenção, para além da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), com a responsabilidade de apoiar as empresas e implementar junto delas a estratégia traçada para a economia do país. Parece ser, efectivamente, esse o caminho seguido pelas empresas portuguesas, onde são praticamente inexistentes departamentos de Intelligence. As autoridades têm, assim, assumido a liderança em Intelligence económica, não só com a expansão de representações da AICEP, mas também com viagens de Estado onde predominam empresários de sectores estratégicos.

Interessa mais ter mecanismos institucionais especializados do que propriamente embaixadas quando é a economia que mais importa. Por exemplo, a AICEP estabeleceu-se em Singapura em 1997 e só dois anos depois é que foi aberta uma embaixada naquele local.

O distanciamento da Intelligence em relação à diplomacia é referido por vários autores do livro e em várias temáticas, sendo ponto assente que os serviços de informações prestam, pela sua natureza, um trabalho mais objectivo. Em realidade, também na área económica os serviços de informações são um instrumento privilegiado em países com os quais não se tem relações políticas próximas.

Também o modus operandi entre serviços de informações civis e empresariais é semelhante, ainda que as informações recolhidas para as empresas sejam distribuídas por mais destinatários, enquanto as informações civis se destinam, commumente, aos chefes de Governo ou de Estado. Importa ainda dizer que, ao contrário dos serviços de informações estatais (onde a desconfiança interna também deve existir), existe uma espécie de esquizofrenia relativamente à possibilidade de elementos da própria empresa fornecerem informações aos concorrentes.

Por outro lado, num mundo globalizado e com ameaças cada vez mais imprevisíveis, são necessárias respostas velozes e uma constante revisão do planeamento estratégico (Graça, 2011, p. 178), não existindo receitas mágicas. O essencial será actuar sobretudo, como defendem vários autores do livro “Estudos de Intelligence”, com pragmatismo, um dos “Sete Pilares da Sabedoria” indicados por T. E. Lawrence.

É por tudo isto que faz sentido Pedro Borges Graça dizer que mais do que o conhecimento, o importante nesta “Era da Intelligence” é evitar os “custos da ignorância” (Graça, 2011, p. 178).

O mesmo autor considera que a resposta, no caso específico português, tem de passar invariavelmente pelo crescimento do “patriotismo económico” (Graça, 2006), por uma “cultura exclusiva”, como a espanhola, a alemã ou a norte-americana – o que se nota por exemplo no língua, com os portugueses, por xebofolia, a disponibilizarem-se para falar a língua dos outros até mesmo em Portugal, quando a língua portuguesa tem tanta força, sendo a sexta língua com mais falantes em todo o mundo - em detrimento de uma “cultura inclusiva”, e por um crescimento do “pensamento estratégico autonomamente português” (Graça, 2006).

Urge entender, em Portugal e não só, que a Intelligence económica tem de dar passos largos, sobretudo nesta altura de crise e num mercado global. Por outras palavras, é importante perceber que chegou a Era da Intelligence, mas sobretudo encarar essa prática como uma forma mais segura de responder aos desafios económicos actuais. Não tem de ser apenas em chinês que a palavra crise significa oportunidade. Esta é a melhor altura para arriscar novas formas de pensar, novas estratégicas e, sobretudo, para um reencontro com o que nos torna únicos e que deve ser valorizado e explorado. Vários autores do livro “Estudos de Intelligence” falam na importância de não descurar o investimento em Intelligence, mas para tal, e acima de tudo, é essencial uma mudança de mentalidades.

Notas bibliográficas:
- CAMPBELL, Duncan (2001) “O mundo sob escuta: as capacidades de intercepção no século XXI”, Lisboa, Frenesi
.- GRAÇA, Pedro Borges (2006), “O tratamento da Informação Estratégica em Portugal: novos desafios na Era da Informação” in http://sites.google.com/site/pbgraca/texto7.
- GRAÇA, Pedro Borges (coord.) (2011), Estudos de Intelligence, Lisboa, Centro de Administração e Políticas Públicas do ISCSP.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A síndroma Brejnev de Putin por Pierre Bühler


Aconselho este artigo, de Pierre Bühler, publicado no Público, sobre a Rússia.

«O resultado das eleições legislativas russas de domingo já era esperado: venceu o partido Rússia Unida, liderado por Vladimir Putin. Da mesma forma, não há dúvida de que Putin irá ganhar as eleições presidenciais previstas para Março de 2012. Mas o entusiasmo do público que ratificou o governo de Putin durante uma década desapareceu, algo demonstrado pelo fraco desempenho do seu partido, Rússia Unida, nas recentes eleições à Duma.

Ao contrário da Europa, assolada por uma crise de dívida soberana, e dos Estados Unidos, cujos líderes discutem sobre a contenção do seu défice, a Rússia pode assemelhar-se a um oásis de estabilidade e continuidade. Mas essa continuidade lembra mais a zastoi, ou estagnação, da era Brejnev.

Os oito anos com um crescimento médio anual do PIB de 7%, durante o governo anterior de Putin (2000-2008), permitiram à Rússia pagar as suas dívidas, acumular quase 600 mil milhões de dólares em reservas de moeda estrangeira e juntar-se às principais economias emergentes. Uma década depois da crise de 1998 ter deixado a Rússia de rastos, os seus líderes gabaram-se de que o país poderia resistir à crise financeira de 2008.

Dados os fundamentos económicos da Rússia, a diminuição da popularidade de Putin pode parecer surpreendente. As previsões do Fundo Monetário Internacional, que apontam para 4% de crescimento em 2011 e nos anos subsequentes, posicionam a Rússia bem atrás da China e da Índia, mas muito à frente das taxas médias de crescimento nos países ricos do G-7. Além disso, o orçamento da Rússia estará equilibrado enquanto os preços do petróleo permanecem acima de 110 dólares por barril.

As tendências a longo prazo também melhoraram. O rápido declínio demográfico foi travado desde a viragem do século (uma época em que o número de caixões era superior ao número de berços, à proporção de 7 para 4), já que os subsídios generosos do governo para incentivar o nascimento do terceiro filho têm impulsionado a taxa de fertilidade, que cresceu de 1,16 filhos por mulher em 1999, para 1,58 em 2010. Este valor está ainda muito abaixo da taxa de reposição de 2,1, mas o aumento da taxa de fertilidade, em conjunto com medidas bem-sucedidas para reduzir a mortalidade masculina, reduziu o ritmo de diminuição da população.

No entanto, a Rússia continua a ser essencialmente um "Estado rendeiro" – isto é, um estado cuja principal fonte de receitas são as rendas – neste caso, de petróleo e gás – ao invés dos impostos, mantendo assim à distância as exigências de representação política. Em vez disso, o Estado é o alvo de empresários políticos que se empenham em conquistá-lo, a fim de conquistar as rendas que ele controla.

A Rússia tem a maioria das características habituais dos estados rendeiros: autocracia, instituições políticas e judiciais fracas, governo arbitrário, ausência de um Estado de direito, pouca transparência, restrições à liberdade de expressão, corrupção generalizada, clientelismo e nepotismo. Também comuns aos Estados rendeiros são os horizontes curtos de investimento, a vulnerabilidade à volatilidade dos preços dos produtos de base – ficando eufóricos com a sua subida e entrando em crise quando descem – e um sector industrial subdesenvolvido e pouco competitivo.

A Rússia de hoje é um reservatório gigante de matéria-prima e a sua economia depende em larga escala dos seus produtos primários – indústria mineira e perfuração petrolífera. A Rússia é o maior exportador mundial de petróleo e gás, possuindo mais de 25% do total das reservas comprovadas de gás. Estes produtos representam mais de dois terços das receitas de exportação do país e são a principal fonte de receita do Estado.

O impacto sobre a governança é demasiado previsível. Em 2011, a organização Transparência Internacional, na sua análise do índice de percepção de corrupção, posicionou a Rússia em 143.º lugar num total de 182 países, a par com a Nigéria, e em 182.º lugar, num total de 210, no que diz respeito ao "controlo da corrupção", um dos indicadores de governança a nível mundial do Banco Mundial. Em relação ao Estado de direito, houve apenas uma melhoria mínima, com a Rússia a situar-se na 156.ª posição.

Entretanto, a infra-estrutura está a desmoronar-se, até mesmo dentro da indústria extractiva vital, ao mesmo tempo que o fabrico não é competitivo a nível internacional. A indústria de armamento russa perdeu a forte posição que tinha junto da Índia e a da China, que outrora foram os seus dois principais clientes. Apesar da propaganda sobre a nanotecnologia e um "Vale do Silício russo" no Skolkovo, as despesas em I&D (Investigação e Desenvolvimento) representam apenas 1/15 do nível dos EUA e um quarto do da China. Como proporção do PIB, foram reduzidas para metade desde o início da década de 1990 e representam agora apenas 1% do PIB. Os cientistas e investigadores, que em tempos foram o orgulho da União Soviética, desapareceram, atraídos muitas vezes por oportunidades mais gratificantes, a nível nacional ou internacional.Com efeito, as universidades russas estão quase ausentes dos rankings mundiais: apenas duas figuram na lista Top-500 da Universidade de Xangai e, numa posição bastante baixa, entre as 400 classificadas pelo Times Higher Education Supplement. A Rússia também tem uma posição fraca – 63.º lugar – no Índice de Competitividade Global publicado pelo Fórum Económico Mundial (World Economic Forum), estando muito atrás de todos os países desenvolvidos e até mesmo de muitos países em desenvolvimento. O mesmo se aplica à capacidade de inovação e à tecnologia.

No entanto, há sinais de esperança. A Rússia já não está aquém do mundo desenvolvido no que diz respeito ao uso da Internet, que tem proporcionado espaço para o discurso não regulamentado, permitindo aos utilizadores contornar o órgão noticioso oficial que é esmagadoramente pró-Putin. Além disso, após longas negociações, a Rússia chegou recentemente um acordo para integrar a Organização Mundial do Comércio, o que implica a necessidade de cumprir todas as obrigações em matéria de transparência e regras de negociação.

Mas a transformação completa da economia da Rússia continua a ser duvidosa. Um dos principais economistas independentes da Rússia, Sergei Guriev, reitor da Escola da Nova Economia, em Moscovo, afirmou, em 2010, que "as reformas significativas são altamente improváveis – pela simples razão de que iriam colidir com os interesses das elites dominantes da Rússia. Em qualquer país rico em recursos e antidemocrático, a classe política e os interesses comerciais que o rodeiam têm pouco ou nenhum incentivo para apoiar direitos de propriedade mais fortes, Estado de direito e concorrência. Na verdade, essas mudanças estruturais iriam enfraquecer o domínio da elite no poder político e económico. O status quo – regras opacas, tomadas de decisão arbitrárias e défice de responsabilidade – permite o enriquecimento de quem está lá dentro, especialmente através da obtenção de uma percentagem das receitas da exportação de produtos".

Ao assinalar o vigésimo aniversário do colapso da União Soviética este Natal, a Rússia terá muito que comemorar. Infelizmente, o que não mudou vai dar-lhe muito com que se lamentar».

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Victor Ângelo: o contacto com as populações ao serviço da ONU

Victor Ângelo é um homem que dispensa apresentações no campo das RI, graças à sua experiência de mais de 30 anos na ONU. É um notável colunista na Visão, mas também podem segui-lo com mais regularidade no seu blogue. Há cerca de um mês, o Dr. Victor Ângelo deu-nos uma excelente aula no seminário de Gestão de Crises e na altura questionei-o acerca do nível das Forças Armadas que encontrou no terreno. Hoje, fica um texto acerca do contacto com as populações no terreno.


A minha interacção com as populações, nas zonas de conflito em que servi, revelou que a preocupação mais urgente é a de restabelecer um mínimo de segurança colectiva. Ou seja, as pessoas estão ansiosas por voltar à normalidade que caracterizava as suas vidas, antes da violência e da crise. Por isso, o que mais desejam é o regresso a um ambiente de segurança. Poderão, assim, voltar às suas actividades económicas, mesmo que sejam apenas ao nível da subsistência, e recuperar uma parcela importante da dignidade perdida.

Em seguida, para que a segurança das comunidades se torne durável, é preciso que as missões de paz apoiem as iniciativas locais de resolução de conflitos e que as interferências políticas provenientes da capital sejam minimizadas. É preciso, por isso, estabelecer uma relação estruturada com os líderes das comunidades, ajudá-los na arbitragem de conflitos de interesses que possam provocar o reacender da violência, e, ao mesmo tempo, garantir uma certa autonomia em relação ao poder central.

Convém tratar de outras questões básicas, sem demora, ao mesmo tempo que se tenta resolver a questão da segurança. Existem certas necessidades imediatas, ligadas às dimensões humanas do conceito de segurança, como a disponibilidade de água potável e de cuidados primários de saúde, que devem fazer parte do pacote inicial. Para além de responderem a aspirações concretas das populações, têm a vantagem de mostrar que a paz traz dividendos tangíveis. 

As missões de paz têm ainda muito que aprender, no que respeita às ligações com as organizações comunitárias ao nível local. Existem algumas experiências válidas, que precisam de ser sistematizadas e difundidas.
Victor Ângelo

Myanmar e as novas oportunidades

A República da União de Myanmar decidiu dar alguns sinais tímidos de abertura e a comunidade internacional estendeu-lhe várias passadeiras. Mas terá o regime militar vontade de abrir tanto os braços? E que papel assumirá a China no país perante o aproximar do Ocidente?

Contrariando a falta de esperança no governo civil presidido por Thein Sein - fiel ao general Than Shwe, o líder da Junta Militar que governou o país de 1992 até 2010 - o novo executivo tem dado alguns passos em direcção à democratização: Suu Kyi, líder do principal partido da oposição e Prémio Nobel da Paz 1991, deixou finalmente de estar em prisão domiciliária e iniciaram-se as negociações entre ao seu partido, a Liga Nacional pela Democracia, e o governo, dezenas de presos políticos foram libertados e os sindicatos foram considerados legais.

O nome de Thein Sein, que consta da lista de pessoas visadas por sanções da União Europeia, ficou manchado por ter recusado, num primeiro momento, ajuda internacional às vítimas do ciclone de 2008. Ainda assim, foi ele quem apelou para o fim das fortes sanções políticas e económicas impostas ao país. Isto porque, apesar dos recursos estratégicos de que dispõe, como gás, petróleo e pedras
preciosas, o Myanmar é dos países mais podres do sudeste asiático, muito por culpa do isolamento a que se vetou. Basta recordar que, antes da ditadura, sob o controlo britânico, era um dos mais ricos da
região e o maior exportador mundial de arroz. Recentemente, tem-se tornado num grande produtor de ópio, uma actividade que não pode ser dissociada do crime organizado e do terrorismo.

Esta progressiva abertura, continua, todavia, à semelhança daquilo a que temos assistido na China, a ficar manchada por casos gritantes de violações dos direitos humanos. Denúncias recentes falam em falta de água e de medicamentos entre prisioneiros que iniciaram uma grave de fome.

Numa altura em que a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) procura consolidar mecanismos mais efectivos de cooperação, para que os seus membros resolvam problemas comuns e ganhem peso na comunidade internacional, o Myanmar foi convidado a presidir à associação, num
acto que mistura esperança com uma tentativa de responsabilização.

Recorde-se que a ASEAN, apesar da sua política de não interferência, foi dando ao longo do tempo sinais de esperança ao Myanmar, como apoio técnico e financeiro para que o país alcançasse os requisitos necessários com vista a tornar-se membro do bloco.

Também os Estados Unidos reagiram com um passo histórico: a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, visita o Myanmar. Apesar de saudar os progressos, o presidente norte-americano, Barack Obama, lembrou que “as violações dos direitos humanos ainda persistem”. “Por isso, vamos continuar a falar claramente sobre os passos que têm de ser dados pelo Governo da
Birmânia para que possa ter uma melhor relação com os EUA”, acrescentou.

Este aproximar acontece numa altura em que as relações de Naypyidaw (capital do Myanmar desde 2005) com Pequim, que sempre se pautaram por uma grande proximidade, com fortes relações económicas e com a China a seguir a sua política de não interferência, conhece uma distensão,
sobretudo após a decisão do Myanmar de colocar na gaveta o projecto da barragem de Myitsone.

A aproximação norte-americana ao Myanmar deve ser vista também à luz dos recursos importantes da região e ainda tendo em atenção a situação estratégica do país naquele mapa asiático, entre os dois gigantes China e Índia, com os quais tem mantido relações cordiais, e ligando o Médio Oriente ao Sudeste Asiático num corredor por onde passam muitos terroristas fugidos do Afeganistão.

Os Estados Unidos têm apoiado muitos executivos do Sudeste Asiático no âmbito da luta contra o terrorismo que travam mundialmente. Logo, também a nível de segurança os EUA devem ter interesses bem definidos para o Myanmar.

Quer penda para o país liderado por Barack Obama, quer se vire para o de Hu Jintao, esta abertura só trará benefícios a Thein Sein, sobretudo se ele conseguir negociar acordos favoráveis ao país e não
sucumbir ao poderio económico dos outros. Caso contrário, poder dar-se o caso de ver evaporarem-se os recursos naturais, enquanto o país permanece na lista dos mais pobres do globo.

NOTA: Este texto foi escrito a 19 de Novembro de 2011.