O panorama das Relações Internacionais, onde o poder joga as cartadas chave, é complexo, volátil e incerto. Neste terreno, onde cada vez jogam mais actores, acreditar num regime jurídico assertivo e duradouro torna-se ingenuidade. Basta pensar que o Direito Internacional decorre da Política Internacional (enquanto a Política Internacional se rege pelo Direito Internacional), é extremamente fragmentado e só envolve os Estados que o reconheçam.
Entre os novos desafios que a comunidade internacional enfrenta na construção do regime jurídico encontra-se a Ingerência Humanitária, que consiste na intervenção pela força para proteger a população de um país. Trata-se de um conceito reconhecido internacionalmente depois de 1988, mas que ainda gera divergências sobre o seu âmbito.
O Conselho de Segurança da ONU parecia alheio às questões humanitárias até 1991, ano em que produziu a resolução 688, que ficaria conhecida como resolução do direito de ingerência e que levou à assistência da população curda no Iraque, vítima do executivo de Saddam Hussein. Deu-se a intervenção humanitária — com indiscutível interesse norte-americano — e, como consequência, “a resolução tornou-se um precedente que veio a ser novamente invocado na Somália e na Bósnia, entre outros casos” (Lima, 2010). Assim, “o direito de ingerência entrava, através da jurisprudência e de forma empírica, para a agenda internacional do Pós-Guerra Fria”, escreve ainda Bárbara Lima (ibidem).
Apesar de a ingerência humanitária ir contra um dos princípios básicos da Carta das Nações Unidas (Na alínea 7 do Artigo 2 lê-se que “nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta”). Manuel de Almeida Ribeiro frisa que “a doutrina internacional tem vindo a considerar estar em formação um costume internacional no sentido de autorizar este tipo de acções” (Ribeiro, 2005). Admite-se que quatro situações justificam uma intervenção do género: crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e limpeza étnica. Para o mesmo autor, “admitir a ingerência humanitária significa reconhecer a violabilidade de uma das mais marcantes fronteiras do domínio reservado dos Estados e, obviamente, da soberania” (ibidem).
Desde logo, a questão da ingerência humanitária pode vir a alterar o regime jurídico internacional na medida em que é preciso definir em que assuntos é que a ingerência humanitária é efectivamente legítima ou viola os assuntos que pertencem ao domínio reservado dos Estados.
Frisando que o conceito de ingerência humanitária “não dispõe de consenso jurídico”, Bárbara Lima escreve que alguns consideram que aceitar este conceito “significaria anular princípios caros ao funcionamento salutar das relações internacionais”, em concreto “a soberania e a não-intervenção”, enquanto outros entendem que “a soberania não pode ser amoral a ponto de permitir a violação de direitos fundamentais e que tomar o princípio da não-intervenção como absoluto mesmo diante de atrocidades é afastar a ética do direito internacional” (Lima, 2010).
Por seu lado, o professor de Direito Fernando Tesón defende que a “tirania e a anarquia provocam o colapso moral da soberania” (Zenit, 2004).
Anita Kons da Silveira assume que a obrigação dos Estados em “proteger direitos humanos decorre do reconhecimento da dignidade da pessoa humana pela própria Carta da ONU”, logo nenhum Estado pode esquivar-se da responsabilização internacional pela violação dos referidos direitos (Silveira, p. 11). A mesma autora destaca ainda que com o fim da Guerra Fria, que ditou o surgimento de uma nova Ordem Internacional, deu-se a aceitação da primazia da protecção dos direitos do homem e da concordância de que o sofrimento humano e a segurança internacional são assuntos intimamente ligados e relacionados com o sistema de segurança colectiva da ONU. A partir de então, o assunto direitos humanos deixou definitivamente de ser encarado como uma das matérias pertencentes ao domínio reservado dos Estados (Silveira, p. 12).
Vladimir Chaves Delgado entende que “um 'dever' de ingerência suporia que, verificada – pela autoridade internacional competente, conforme normas preestabelecidas – a existência de uma situação que daria ensejo à ingerência humanitária, esta ocorreria de conformidade com o procedimento estabelecido para tais casos pela comunidade internacional”, explicou, advertindo que essa questão é “extremamente complexa e perigosa” (Delgado, 2005/6 p. 67 e 68).
Outro problema que se levanta ao regime jurídico está relacionado com o facto de a decisão de ingerência humanitária ser confiada ao Conselho de Segurança, o que não representa uma garantia de imparcialidade. Para além deste órgão apenas contar com 15 membros, os cinco membros permanentes (todos grandes potências económicas) têm poder de veto, são irremovíveis e, na opinião de Isabela Piancentini de Andrade, “exercem um poderio inaceitável sobre os demais Estados” (Andrade, 2008, p. 179). Nesta questão importa recordar as palavras de Rodrigo Fernandes More, que defende que “a soberania deve ser outro importante elemento a ser analisado, já que não se pode negar a flexibilização de seu carácter horizontal diante da verticalidade do conceito de hegemonia” (More, 2007).
Mais problemático do que o poder dos membros do Conselho de Segurança é o facto de um país poder intervir noutro sem o aval daquele órgão, o que abre um precedente grave que vai entrando na escala do direito consuetudinário (à luz do qual os outros Estados aceitam uma acção sem a repudiarem) e que pode motivar países a intervirem noutros sob a justificação – muitas vezes dificilmente aceite – da ingerência humanitária. Se o caso da intervenção da NATO no Kosovo (para supostamente impedir a aceleração e o aprofundamento da limpeza étnica executada pelos sérvios) sem o mandato das Nações Unidas que o legitimasse - tendo em conta que seria de esperar um veto da Rússia ou da China – foi talvez o caso mais significativo, a verdade é que essa lógica tem-se repetido, como por exemplo no Iraque em 2003.
Efectivamente, este tipo de intervenção pode inverter toda a lógica jurídica da ingerência humanitária e até das intervenções militares.
No mesmo sentido, Eugênia Kimie Suda Camacho Pestana escreve que “é preciso perceber que o problema da ingerência humanitária apresenta algumas sombras, correndo o risco de, a pretexto de uma moralização do direito e das relações internacionais, haver uma radicalização da 'politização humanitária' sem regras claras e sem um verdadeiro consenso da comunidade internacional” (Pestana, 2004, p. 11).
As sanções para intervenções noutros países sem o respaldo do Conselho de Segurança ou as justificações necessárias normalmente apenas se traduzem numa imagem prejudicada junto da opinião pública interna e externa. Urge, portanto, definir com clareza o conceito de ingerência humanitária, o que fundamenta uma ingerência desse género, quem deve ingerir-se e com que legitimidade, quais os objectivos e os limites da ingerência e se ela deve ser um direito ou um dever. Só isso vai ser possível responsabilizar – pelo menos no âmbito da opinião pública – os responsáveis por ingerências erradas e evitar que o Direito Internacional não perca relevância na organização das relações internacionais, abrindo espaço a posições unilaterais polémicas que levem os cidadãos a concluir que na cena internacional o Direito Internacional é apenas numa realidade abstracta facilmente esquecida quando os interesses particulares, sobretudo económicos e políticos, de grandes potências entram em jogo.
Bibliografia:
- ANDRADE, Isabela Piancentini de, “Conselho de Segurança da ONU: legislador internacional?”, in Revista Ius Gentium: Teoria e Comércio no Direito Internacional, nº 1, Jul de 2008.
- CERQUEIRA, Daniel Lopes (2005), “O tratamento do terrorismo pelo aparato normativo internacional”, in http://jus.uol.com.br/revista/texto/7368/o-tratamento-do-terrorismo-pelo-aparato-normativo-internacional (Consultado em Abril de 2011).
- CUNHA, J. M. da Silva (1957), Direito Internacional Público, Lisboa, Editorial Império.
- DEEN, Thalif (2010), “A ONU não consegue definir terrorismo”, in http://www.ips.org/ipsbrasil.net/nota.php?idnews=6555 (Consultado em Abril de 2011).
- DELGADO, Vladimir Chaves, “A Soberania dos Estados Face a Questão da Ingerência Humanitária no Direito Internacional Público”, in Revista Jurídica, volume 7, nº 76, p. 61 a 69, Dezembro de 2005 a Janeiro de 2006, Brasília.
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- LIMA, Bárbara (2010), “Direito de Ingerência e Soberania no Pós-Guerra Fria: limitações e necessidades do intervencionismo humanitário”, in Revista Electrónica Boletim do Tempo, Ano 5, Nº32, Rio.
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- MORE, Rodrigo Fernandes (2007), “Conflitos modernos, Direito e relações internacionais”, in http://jus.uol.com.br/revista/texto/10048/conflitos-modernos-direito-e-relacoes-internacionais (Consultado em Abril de 2011).
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- RIBEIRO, Manuel de Almeida (2005), “O Direito da Nova Ordem Internacional”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora.
- RIBEIRO, Manuel de Almeida e SALDANHA, António Vasconcelos de (2003), Textos de Direito Internacional Público – Organizações Internacionais, Lisboa, Instituto Superiora de Ciências Sociais e Políticas.
- SILVEIRA, Anita Kons da, “A intervenção humanitária como forma legítima de protecção dos direitos humanos”, in http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume4/arquivos_pdf/sumario/art_v4_XIII.pdf (Consultado em Abril de 2011).
- TEIXEIRA, Nuno Severiano (2004), “Ingerência humanitária”, in Diário de Notícias, 4 de Agosto de 2004, Lisboa.
- ZENIT (2004), “Ingerência humanitária, prós e contras”, in http://www.zenit.org/article-13678?l=spanish (Consultado em Abril de 2011).
Nota: Texto escrito em Abril de 2011.
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