quinta-feira, 1 de março de 2012

“Frost/Nixon”, entre a conquista e a efemeridade do poder


"O poder é o afrodisíaco mais forte."
Henry Kissinger1.


O filme “Frost/Nixon”, de Ron Howard, respira universalidade. Como observa J. Oberman, a temática do filme, que conta a história de um apresentador de televisão que consegue arrancar um pedido de desculpa aos norte-americanos por parte de Richard Nixon pela seu envolvimento no escândalo de operações ilegais contra a oposição durante a campanha eleitoral de 1972, que culminou com a sua vitória esmagadora, “não é o caso Watergate, mas as suas consequências” (Oberman, 2008), que se relevaram imediatamente indeléveis. Partindo do princípio de que o fenómeno do poder constitui “uma realidade generalizável a todo o plano relacional”, (Santos, 2007, 248), este filme aborda várias relações de poder.

Desde logo, a partir do caso Watergate, o jornalismo tornou-se mais agressivo e fiscalizador relativamente ao poder presidencial - até então encarado como quase inquestionável – aproximando-se assim da qualificação que lhe é atribuída de “Quarto Poder”. Muitos jornais passaram a assumir a sua preferência política. Como espelho da sociedade ou como precursor das ideias dominantes na mesma, o jornalismo, a partir deste caso, despertou para o facto de os que políticos podem ter segredos e “não devem ser confiáveis” (Browning, 2008). O caso Watergate, resultante de um desejo de continuidade de poder político por parte de Robert Nixon, trouxe desilusão e, como escreve Silvia Browning, mudou bastante o cenário político, bem como as “políticas internas e externas” dos EUA (Browning, 2008). De acordo com Adriano Moreira, “a adesão ou repulsa” entre a população e governo tem um efeito imediato sobre o poder efectivo (Moreira 2002, 255) de um Estado a nível internacional. Neste sentido, dentro daquilo que o autor define como capacidade de acção colectiva enquanto recurso disponível de um Estado – no âmbito do seu poder potencial2 - encontra-se o grau de coesão nacional, o carisma da liderança e a aceitação das chefias. Tudo isto saiu afectado com este episódio de corrupção.

No campo internacional, alguns autores acreditam que o caso Watergate veio deteriorar ainda mais as relações dos Estados Unidos com a Rússia, como Henry Kissinger, já que o relacionamento entre os dois países paralisou em 1974, ano da renúncia do antigo presidente norte-americano, mas Robert D. Schulzinger ressalva que apesar das tentativas de aproximação antes dessa data, elas nunca obtiveram resultados palpáveis (AAVV, 1993, 408).

Efectivamente, o filme aborda várias questões da política externa norte-americana durante a administração Nixon, uma das mais elogiadas neste campo. Quando faleceu, alguns dos sucessores de Richard Nixon elogiaram os êxitos da sua política no Vietmane, a tentativa de acordar com a Rússia uma redução de armamento (numa época em que se temia uma guerra nuclear) e o facto de ter aberto o caminho para a aceitação da China na comunidade internacional, colocando, assim, os Estados Unidos na linha da frente da política internacional.

Numa das quatro entrevistas a David Frost, Richard Nixon disse que a guerra do Vietname, uma “herança” nas suas palavras, foi um “teste à credibilidade norte-americana”. Henry Kissinger – para quem Richard Nixon era “altamente sofisticado em questões internacionais” (Kissinger, 1996, 590) - explica que a administração do presidente envolvido no caso Watergate procurava no Vietname “uma solução que permitisse à América continuar a sua função internacional no pós-guerra, a de protector e paladino dos povos livres”. O mesmo autor reforça que o antigo Chefe de Estado norte-americano “dava importância à credibilidade e à honra, porque estas definiam a capacidade da América para moldar uma ordem internacional pacífica” (Kissinger, 1996, 588). A participação na guerra do Vietname acabou por revelar-se útil numa altura em que era “necessária uma importante reformulação da política externa americana”, escreve ainda Kissinger (1996, 613).

Além da importância de participar numa conflito dentro da Guerra Fria, onde também estava a Rússia e, neste sentido, em jogo o poder militar de cada uma das potências que “dividiam” o mundo na altura, era importante para Richard Nixon travar o comunismo, uma ideologia opositora ao capitalismo norte-americano e que o antigo Chefe de Estado encarava como uma ameaça. Segundo David Frost, Nixon disse que o Cambodja era o “quartel” de toda a operação comunista no Vietname do Sul para justificar a intervenção naquele país.

Porém, ao contrário do esperado e do facto de possuir mais recursos materiais e imateriais do que o adversário, os Estados Unidos acabaram por sair derrotados no Vietname pela guerrilha das tropas do Exército do Vietname do Norte. Neste sentido, pode então falar-se de poder estrutural, que corresponde à “autoridade para determinar as regras do jogo e determinar a forma como os outros jogarão o jogo” (Holsti, 1995, 126) e que ditou a vitória dos vietnamitas do Norte, apoiados logisticamente pela Rússia, Coreia do Norte e China, países que não se envolveram efectivamente no conflito. Ainda no âmbito da teoria dos jogos, talvez tenha faltado aos Estados Unidos um maior debruçamento sobre o “second-guessing”, isto é, uma reinterpretação ou uma reavaliação dos processos intelectuais do adversário para ganhar vantagem sobre o oponente, como é defendido por James E. Dougherty e Robert L. Pfaltzgraff (Dougherty e Pfaltzgraff, 1981, 513).

A derrota neste território não só prejudicou a intenção dos EUA de travar a expansão do comunismo, como teve um forte impacto no poderio militar do país, o que se reflectiu no chamado “Síndrome do Vietname”, traduzido numa espécie de trauma que levou os norte-americanos a mostrarem pouca abertura para a participação do país em conflitos bélicos no exterior e, consequentemente, numa mudança na política exterior da América até à eleição de Ronald Reagan, em 1980.

No filme “Frost/Nixon”, o antigo presidente norte-americano mostra-se insatisfeito por as pessoas estarem apenas preocupadas com o caso Watergate e esquecerem os feitos que conseguiu a nível internacional. Porém, na política externa, existe uma forma de poder denominada “soft power”, à luz da qual o modelo de funcionamento político interno constitui um exemplo e uma forma de persuadir os outros, como explica Victor Marques dos Santos (Santos, 2007, 282). Por outras palavras, o facto de, pela primeira vez, um país como os Estados Unidos ter um presidente pouco merecedor da confiança do povo afectou a poder do país a nível internacional, ao expor uma das suas fragilidades. Este motivo explica porque é que Richard Nixon é sobretudo recordado na história da corrupção política, como remata o filme.

A ideia de que o poder está intrinsecamente ligado ao interesse de um país, defendida por Hans J. Morgenthau (Morgenthau, 1993, 10), vai ao encontro daquilo que Nixon responde na entrevista a David Frost para justificar o seu abuso de poder na invasão da sede do Comité Nacional Democrata: “Quando um presidente faz algo, significa que isso não é ilegal”.

A questão do poder está também ligada à origem do próprio caso Watergate ou não fosse a invasão dos escritórios do principal partido da oposição uma acção levada a cabo no sentido de Richard Nixon assegurar a sua permanência no poder.

A falta de coesão nacional - um elemento importante na política externa, como anteriormente referido - também foi notória em torno do perdão concebido por Gerald R. Ford ao seu antecessor pelo envolvimento no caso Watergate, uma decisão que se traduziu numa polarização de um país já traumatizado pelo factos relativos ao escândalo. Enquanto alguns cidadãos entendiam que o antigo governante deveria ir a julgamento, outros encaravam a renúncia como suficiente e Nixon como uma vítima. Pode dizer-se que também este perdão presidencial, enquadrado num direito constitucional, constituiu um acto de poder.

A problemática do poder, que atravessa todo o filme, é também visível na relação entre o entrevistador e o antigo presidente, já que ambos procuram inverter o rumo das suas vidas com as entrevistas, num “duelo”, como inicialmente referem, em que só um podia ganhar. Nesta perspectiva é levada ao extremo a definição de Mongethau, que encara o poder como “tudo aquilo que estabelece e mantém o controlo do homem sobre o homem” (Mongethau, 1993, 11).

Nesta busca do poder, a preparação, dita estratégia, assume um papel fundamental, como é notório na parte – essencial no andamento da história – em que o antigo governante norte-americano liga a David Frost, arrasado pelo seu fraco desempenho nas entrevistas até então, para o incitar a preparar a ultima entrevista, dedicada ao escândalo Watergate. Nesta conversa, dois homens que nasceram do nada e que se tornaram personalidades importantes compartem o medo de regressar à estaca zero, numa assunção de que o poder é algo efémero e em permanente construção.

O próprio realizador, Rod Howard, disse aos jornalistas, ainda antes da estreia, que “Frost/Nixon” não é um filme sobre política, mas antes uma história humana sobre o facto de alguém que está “no fundo” e a “tentar sair dessa situação usando todas as ferramentas que se tem ao alcance”.

Deste filme pode ainda concluir-se que numa luta de poder nem sempre existe um total vencedor e um total vencido, já que se David Frost conseguiu a confissão que tanto ansiava, Richard Nixon soltou, na entrevista, o pedido de desculpas ao povo da América pelo qual a sua consciência suplicava.

Esta transversalidade das diferentes formas de poder que ressaltam do filme tornam-no numa lição universal, quer para jornalistas, políticos ou diplomatas, quer para cada indivíduo que queira entender algumas dinâmicas da sociedade em que se insere.


Bibliografia:

  • ARENAL, Celestino del (1990), Introducción a las Relaciones Internacionales, Madrid Tecnos (Citado por Victor Marques dos Santos em Teoria das Relações Internacionais - Cooperação e Conflito na Sociedade Internacional).
  • BROWNING, Silvia (2008), “Watergate had a great impact on the American Political scene”, in www.mightystudents.com (consultado em Novembro de 2010).
  • DOUGHERTY, James E., PFALTZGRAFF, Robert (1981), Contending Theories of International Relations, A Comprehensive Survey, Nova Iorque, Harper & Row. (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
  • FIRESTONE, Bernard J. e UGRINKSY, Alexej (1993), Gerald R. Ford and the politics of post-Watergate America, Westport, Greenwood.
  • HOBERMAN, Jim (2008), “Ron Howard's Frost/Nixon explores Watergate's aftermath”, in www.citypages.com (consultado em Novembro de 2010).
  • HOLSTI, K. J. (1995), International Politics. A Framework for Analysis, Englewood Cliffs, N. J. (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
  • MOREIRA, Adriano (1989), Relações entre as grandes potências, Lisboa, Instituto de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
  • MOREIRA, Adriano (2002), Teoria das Relações Internacionais, Coimbra, Almedina (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
  • MORGENTHAU, Hans J. (1993), Politics Among Nations The Struggle for Power and Peace, Nova Iorque, McGraw-Hill (citado por Victor Marques dos Santos em Introdução à Teoria das Relações Internacionais).
  • SANTOS, Victor Marques dos (2007), Introdução à Teoria das Relações Internacionais, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
  • SANTOS, Victor Marques dos (2009), Teoria das Relações Internacionais - Cooperação e Conflito na Sociedade Internacional, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
1Conselheiro político e confidente de Richard Nixon e co-vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1973 pelo seu papel na obtenção do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname.
2Celestino del Arenal (Arenal,1983, 510) distingue poder potencial de poder actual, ou seja, poder real de poder efectivo, segundo Vítor Marques dos Santos (Santos, 2007,257)

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