Deixo convosco um convidado que muito nos honra, o Professor Nuno Canas Mendes, docente do ISCSP e membro do Conselho Científico do Instituto do Oriente/ISCSP. Para além disto, também dá aulas no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Para saberem mais acerca da actividade académica e de investigação do Professor Canas Mendes basta clicarem aqui (e escreverem o nome do professor na box). O texto abaixo permite-nos o aprofundamento teórico acerca do peso dos BRIC nas RI de hoje, sobretudo na área económica e nas relações desenvolvidas pelos seus membros. Esperamos que seja do vosso agrado, pois para nós foi também uma honra!
Sobre o conceito de BRIC na Teoria das Relações Internacionais, Nuno Canas Mendes
Numa visão de conjunto sobre a questão aqui tratada, rapidamente se poderia concluir que não há ainda um enquadramento teórico digno deste nome para descrever o fenómeno das economias emergentes, tendo até aqui prevalecido a aplicação de teorias sobre “middle powers” (Huelz, 2009 e Jordaan, 2003). O estudo do fenómeno e a avaliação do respectivo impacto na estrutura do sistema internacional tem suscitado um amplo debate sobre a classificação destes poderes, os quais já foram apodados de ‘would-be great powers’ (Hurrell, 2006), mas tem vingado o acrónimo proposto pelo célebre relatório da Goldmann-Sachs. Hurrell defende que está em causa a criação de uma identidade e ideologias auto-construídas, perfilhando assim uma opção construtivista e avançando que é o reconhecimento pelos pares e pelos outros Estados que define a categoria.
A literatura existente sobre a utilidade analítica e operacional do conceito de BRIC não é muito ampla, o mesmo acontecendo com a que contempla o peso específico do grupo, tão heterogéneo, de países em causa. Esta escassez faz-se sentir ainda com os estudos que se ocupam do seu lugar estrutural no sistema das relações internacionais, verificando-se uma tendência para se fixar sobre as relações com terceiros. As dinâmicas internas estão muito menos exploradas e neste sentido o projecto procurará desbravar terreno.
Se tivéssemos de estabelecer um perfil ‘médio’ para as economias emergentes (Hurrell, 2006), verificaríamos que têm uma forte identidade internacional, que desenvolveram capacidades materiais relevantes que lhes permite ter um certo grau de influência no mundo, que têm agendas distintas dos poderes médios tradicionais, que definem estratégias com um pendor reformista e que são poderes regionais (existe uma espécie de legitimação prévia no âmbito regional que lhes assegura o pretendido protagonismo regional)[1].
Assim, este texto procurar-se-á contribuir para o aprofundamento do debate teórico sobre os conceitos de ‘economia emergente’, ‘poder médio’ e BRIC, pela aplicação das teorias das relações internacionais ao caso em análise, com ênfase no realismo e no institucionalismo-liberalismo e, depois fazer o levantamento das características distintivas entre os BRIC e da capacidade dessas diferenças de gerarem sinergias ou obstáculos nas respectivas relações.
Os BRIC como categoria analítica:
O contributo do Realismo:
Segundo uma análise realista, o peso da economia é importante apenas na medida em que permite avaliar as capacidades de um Estado, i.e., o respectivo poder. A premissa essencial do realismo é por demais conhecida: num mundo em que o valor dos Estados soberanos continua a ser a referência no meio de uma anarquia tendencial resultante da ausência de uma autoridade ‘central’ cujas decisões tenham força de lei, o direito internacional impõe-se só enquanto os Estados o aceitem como ‘norma de conduta’, mas não os impede de continuar a sentir a necessidade de garantirem a sua segurança e de defender os seus interesses. Deste modo, as questões relacionada s com comércio e o investimento são matérias que os realistas subordinam à estrutura estabelecida das relações inter-estaduais. Ora o interesse acrescido dos realistas pelos BRIC não deriva tanto das relações económicas com eles desenvolvidas como do facto de se terem constituído como um grupo ‘novo’ de grandes potências capazes de ‘fazer sombra’ aos poderes tradicionais. Com efeito, serão as capacidades materiais de algum ou de todos estes países suficientes para serem considerados como ‘poderes maiores’ à escala global? E, se sim, que significado e que efeitos tem esta novidade no sistema interestadual? No plano militar, o mundo parece continuar inequivocamente unipolar, com a China, a Rússia e a Índia a representarem, respectivamente, 4.3, 3.0 e 2.1 por cento da despesa militar mundial (Armijo, 2007), valores modestos por comparação. No plano económico, os BRIC estão no top 10 de 15 economias e tenderão a subir no ranking. E poderão converter parte do seu poderio económico em maior capacidade militar…
Independentemente das variações e das diferenças entre cada um deles, a selecção dos indicadores é problemática, mas põe a tónica no desenvolvimento de uma multipolaridade, reforçada pelo eventual declínio da potência hegemónica, na medida em que pode dar lugar à ascensão da China ou à re-emergência da Rússia (Brasil e Índia não parecem ser considerados neste cenário). Num registo idêntico, sugere a ideia da formação de uma coligação anti-ocidental, pela articulação das potências em ascensão. Em todo o caso, estas visões mais pessimistas esbarram ainda com as tensões existentes entre a Rússia, a China e a Índia. É bem conhecida a disputa entre a China e a Rússia pelo espaço da Ásia Central ou as disputas fronteiriças entre a China e a Índia e a China e a Rússia. Se alguns deles aumenta o seu poder é imediatamente visto como uma ameaça o que compromete a coesão do grupo e dá vantagem aos EUA, com aliados que resultam do jogo de equilíbrio de poderes (a Europa face à Rússia, o Japão face à China) (Brawley, 2007). Esta lógica não se aplica à Índia e ao Brasil, cuja afirmação preocupa acima de tudo os vizinhos Paquistão (ainda mais do que a China) e Argentina, respectivamente.
O contributo do Institucionalismo-liberalismo
Esta corrente teórica considera que a existência de instituições internacionais constitui um incentivo e uma oportunidade para os Estados de fazerem as suas escolhas, ao mesmo tempo que permite uma maior cooperação com melhores resultados para todos. Os exemplos são múltiplos. O poder só interessa aos Estados na medida em que os outros Estados têm de ser persuadidos ou dissuadidos porque há um conflito de interesses. A participação activa nas instituições internacionais permite-lhes ter maior voz e maior influência, o que pode passar pela correcção de algumas assimetrias[2].
O valor da democracia – na resolução pacífica de conflitos e no seu compromisso com o humanitarismo e normas universais – cria uma cisão entre os BRIC: os regimes autoritários da China e da Rússia e os democráticos da Índia e do Brasil, notoriamente detentores de soft power, assumindo um papel de relevo global em questões como as mudanças climáticas ou a defesa de uma diplomacia sul-sul ou ainda a defesa do anti-Davos Fórum Social Mundial, proposto por Oded Grajew.
Em 2003, os dois países – Índia e Brasil - juntaram-se à África do Sul (através da Declaração de Brasília)[3] para conduzirem as negociações sobre agricultura em bloco com a OMC, o que deu origem ao G20, na sequência da cimeira de Cancun[4]. Tem-se assistido, igualmente, a uma maior participação dos BRIC nas instituições internacionais e inclusivamente a algum incentivo a esta participação: tal explica que a Rússia tenha aderido ao grupo dos países mais industrializados formando o G8 (e ainda o G8+5 incluindo já os três ausentes), bem como o já mencionado papel proeminente do Brasil e da Índia no G20.
No âmbito destas iniciativas, destaque ainda para o ‘trilateral arrangement’ Rússia-Índia-China que promove a reunião dos ministros dos negócios estrangeiros desde 2006. A cooperação entre os BRIC alargou-se também através da realização de outras reuniões de alto nível: cimeiras de ministros das finanças e de chefes de Estado e de governo. O Brasil e a Rússia tiveram neste particular um papel muito importante na transformação dos BRIC de mera noção financeira em grupo político genuíno (Glosny, 2010). Esta institucionalização, mais do que animada por uma espécie de ‘antagonismo mobilizador’, pretende assentar numa defesa realista dos interesses comuns, de partilha de experiências, de coordenação de estratégias e de desafio ao Ocidente (veja-se, por exemplo, o que sucedeu no quadro da OMC), o que não implica necessariamente, pelo menos para já, um revisionismo da ordem. A este propósito, um documento chinês de 2009, o Defense White Paper, é elucidativo: “China has become an important member of the international system, and the future and destiny of China have been increasingly closely connected with the international community. China cannot develop in isolation from the rest of the world, nor can the world enjoy prosperity and stability without China ” (Glosny, 2010)
Mas o desenho actual de muitas instituições internacionais não reflecte ainda esta dinâmica, como mostra a sempre polémica composição do Conselho de Segurança da ONU. Com dois dos BRIC como membros permanentes, a entrada do Brasil e da Índia só tornaria o órgão mais complexo do que já é, para além de criar desconforto junto de países como o Japão, a África do Sul ou mesmo o Paquistão.
Sinergias e obstáculos: reforçar a cooperação intra-BRIC
Reforçar a cooperação intra-BRIC é um desafio que esbarra com as diferenças e com a competição entre si. Mas que ao mesmo tempo permite reforçar a liderança do mundo em desenvolvimento e o lançamento de uma plataforma activa que esbata alguns dos obstáculos ao seu reforço nas relações internacionais, designadamente a existência de regimes políticos diversos, economias com dimensões variáveis, e visões diferenciadas sobre questões políticas capitais, como o comércio livre, energia ou as reformas a introduzir nas instituições existentes.
A ultrapassagem destes constrangimentos põe em causa a coerência da acção dos BRIC como bloco, não obstante todas as medidas tomadas para estruturar esta cooperação. Mais ainda do que as divergências, o facto de três dos BRIC se verem reciprocamente como ameaças é um impedimento ao aprofundar da dinâmica de bloco, deixando o Brasil numa posição favorável, visto ser o único que não tem qualquer pendência com nenhum dos parceiros.
REFERÊNCIAS:
Armijo, Leslie Elliott (2007) – ‘The Brics Countries (Brazil , Rússia, Índia and China ) as Analytical Category: Mirage or Insight?’, Asian Perspective, vol. 31, n.º 4 (7-42).
Brawley, Mark R. (2007) – ‘Building Blocks or a Bric Wall? Fitting U.S. Foreign Policy to the Shifting Distribution of Power’, Asian Perspective, vol. 31, n.º 4 (151-175).
Glosny, Michael (2010) – ‘China and the BRICS: A Real (but limited) Partnership in a Unipolar World’, Polity, Vol. 42, No. 1 January 2010 (100-129), http://www.scribd.com/doc/40252182/Glosny-China-and-the-BRICs-Clean-Sept-11-Version-ISA-Paper
Huelz, Cornelia (2009) – Middle Power Theories and Emerging Powers in International Political Economy: A Case Study of Brazil . A Thesis submitted to the University of Manchester for the degree of PhD in the Faculty of Humanities.
Hurrell, Andrew (2006) – ‘Hegemony, Liberalism and Global Order: What Space for Would-Be Great Powers?’, International Affairs, 82 (1), 5-19.
Jordaan, Eduard (2003) – ‘The Concept of a Middle Power in International Relations: Distinguishing between Emerging and Traditional Middle Powers’, Politikon, 30 (2), 165-181.
[1] Hurrell (2006) considera três traços de união entre os “would-be great powers”, a saber: 1) a variedade de recursos económicos, militares e políticos, a sua capacidade de contribuir para a produção de uma ordem internacional e o grau de coesão interna e capacidade de acção do Estado; 2) a crença partilhada num maior empenhamento e influência nos assuntos mundiais e a existência de um propósito e de um projecto que incita o apoio nacional; 3) a posição destes países à margem do paradigma liberal ocidental prevalecente, com os EUA como única superpotência.
[2] A título de exemplo, registe-se que no FMI e no Banco Mundial a China dispõe de menos votos do que a França e o Reino Unido apesar da sua economia ser incomparavelmente mais forte.
[3] Também conhecido como IBSA (acrónimo formado pelas iniciais dos três países), esta ‘iniciativa trilateral de desenvolvimento’ foi lançada para promover a cooperação e o intercâmbio sul-sul. Neste âmbito surgiu a IBSA Dialogue Fórum de que saiu a aludida Declaração de Brasília. Em 2004, foram definidas as Guidelines for Action, que previam a cooperação nas áreas da ciência e tecnologia, energia, saúde, transportes e turismo, comércio e investimento, infraestruturas, criação de emprego e apoio às pequenas e médias empresas, defesa e educação. Note-se que, em contraste com o grupo BRIC, este grupo reúne as três maiores democracias de cada continente do hemisfério sul.
[4] O acrescido peso específico nas negociações e instituições internacionais tem-se feito sentir em diversas ocasiões. A título de exemplo, refira-se que na ronda de Doha (2008), as inconcluídas negociações ocorreram entre quatro actores: EUA, EU, Índia e Brasil. Na Cimeira de Copenhague (2009), os líderes da China, Índia e Brasil e África do Sul negociaram a declaração final com os EUA, excluíndo a EU, Rússia, Japão e outros poderes globais.
Este texto mereceu um comentário no site Ásia Comentada, de Paulo Yokota, antigo director do Banco Central do Brasil e ex-professor da USP, com o qual temos uma parceria. Ficam considerações muito interessantes sobre a política externa brasileira vista de dentro: http://www.asiacomentada.com.br/2011/11/ligeiros-comentarios-sobre-o-artigo-no-ocidente-subjetivo/#more-6629
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